Deitado
aos ombros, o manto extenso de natais funciona como barreira protectora, é
agasalho contra o bolor das invernias e terríveis frialdades. Natal é a bossa
de H2O, refúgio peculiar assumido, que os homens transportam no eu e existe sem contrapeso ou excesso de carga.
Em
tirada de igualdade de género, que a moda tem destas coisas, pode até supôr-se que
o Natal é de todos. Falso. O Natal português é sobretudo das mulheres.
Feminino, portanto. Os homens – a maioria - têm o efeito de pastores em presépio: curiosos,
vão a caminho. E se não fossem?! Ora, paciência, a sagrada família estaria igualmente
no estábulo, ensimesmada em si mesma, como compete onde há nascimento de gente, quanto mais de um
Deus. Ah! Mas então e as crianças...pois sim, pois sim...as crianças são o
musgo do presépio. Sem elas, tudo perde cor, incluindo a trindade do estábulo a
rescender santidade. É assim: presépio sem musgo é lugar desengraçado e meio
triste. Enquanto que, sem pastores... enfim, por respeito à diversidade opinativa,
deixamos a sua necessidade à consideração individual. Senão vejamos:
Para
as mulheres, Natal é trabalho primordial, festa que, meses antes, se antecipa
em afazeres e rituais que confluem na execução de presentes. Há as que se
desunham na cozinha, ao fogão. Esmeram-se a encher afogueados boiões de compota
apurada em pontos diversos. É ver morangos, framboesas, pêssegos, maçãs, cascas
de laranja e limão, nadando por detrás do vidro, calda frutada que cai devagar,
em grossas e peganhentas lágrimas. Outras, mais destras com agulhas, lançam-se a
tecer um infindo de novelos de onde emergem em riste, peças quentes e amores de
inverno prontos para a luta contra frios de realmente. As terceiras, rodeiam-se
de pratos e travessas e as mãos afadigam-se a enchê-los de arroz doce,
brinhóis, coscorões, azevias... que depois entregam aos amigos como se sejam nada,
na leveza satisfeita que desconta tempo gasto e mais etecetras. Há ainda as que
traçam no pano as suas maravilhas de horas em passo certo de agulha, cenários
coloridos a mão própria. E as que pintam em tecido e no papel, que fazem
quadros e enchem telas, que arredam canecas e chávenas e nasce-lhes um estúdio
na cozinha. E depois há pássaros e flores a escapar-lhes das mãos, caminhos e
veredas que sobem até ao encanto de casinhas com telhado vermelho e fumo na
chaminé. E assim se gastam as mulheres, em recato e pacatez, a criar intervalos
no seu imenso tudo, elas a afirmarem, naturais, não vejo televisão, não tenho
tempo.
Entretanto,
o que fazem os homens?! Pois, não sei, acho que têm um tempo importante cheio
de tarefas e trabalhos urgentes – mas um de cada vez -, e não pensam ainda em
natais. Natal antes do tempo, é coisa de mulheres desocupadas, devaneio. Por isso,
deixam-nas andar entretidas, contentes porque não lhes mudam os canais da
sport-tv nos intervalos do futebol com a
desculpa maníaca, “deixa só ver o que está a dar”. E, no íntimo, pensam que bem
podia haver um natal só delas e de ano inteiro. Aí sim, seria o descanso.
Temos
ainda de considerar as mulheres sem dinheiro, as fanáticas por compras. Essas
temerárias vencem quilómetros de loja: palmilham ao centímetro bancadas de camisolas
e meias; palpam cachecóis e boxers; passam a pente fino as miudezas das poucas
lojas onde lhes cabe a carteira; espiolham o canto mais escuso, onde quiçá
existe sei lá quê ao preço da chuva; perdem-se a despir e vestir peças que
destinam a outrém, a moldá-las de cabeça a um corpo diverso, solilóquios de
vestiário que deixam sorrisos em quem passa, aqui é mais estreita, tem o
pescoço mais alto, é mais baixa, é mais alta...
E
tudo isto, veja-se, é um nico da vida feminina, uma unha do dedo mínimo, nos
dois ou três meses antes de haver Natal.
Sem comentários:
Enviar um comentário