segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Feminino Incontornável

Deitado aos ombros, o manto extenso de natais funciona como barreira protectora, é agasalho contra o bolor das invernias e terríveis frialdades. Natal é a bossa de H2O,  refúgio peculiar assumido, que os homens transportam no eu e existe sem contrapeso ou excesso de carga.
Em tirada de igualdade de género, que a moda tem destas coisas, pode até supôr-se que o Natal é de todos. Falso. O Natal português é sobretudo das mulheres. Feminino, portanto. Os homens – a maioria -  têm o efeito de pastores em presépio: curiosos, vão a caminho. E se não fossem?! Ora, paciência, a sagrada família estaria igualmente no estábulo, ensimesmada em si mesma, como compete  onde há nascimento de gente, quanto mais de um Deus. Ah! Mas então e as crianças...pois sim, pois sim...as crianças são o musgo do presépio. Sem elas, tudo perde cor, incluindo a trindade do estábulo a rescender santidade. É assim: presépio sem musgo é lugar desengraçado e meio triste. Enquanto que, sem pastores... enfim, por respeito à diversidade opinativa, deixamos a sua necessidade à consideração individual. Senão vejamos:
Para as mulheres, Natal é trabalho primordial, festa que, meses antes, se antecipa em afazeres e rituais que confluem na execução de presentes. Há as que se desunham na cozinha, ao fogão. Esmeram-se a encher afogueados boiões de compota apurada em pontos diversos. É ver morangos, framboesas, pêssegos, maçãs, cascas de laranja e limão, nadando por detrás do vidro, calda frutada que cai devagar, em grossas e peganhentas lágrimas. Outras, mais destras com agulhas, lançam-se a tecer um infindo de novelos de onde emergem em riste, peças quentes e amores de inverno prontos para a luta contra frios de realmente. As terceiras, rodeiam-se de pratos e travessas e as mãos afadigam-se a enchê-los de arroz doce, brinhóis, coscorões, azevias... que depois entregam aos amigos como se sejam nada, na leveza satisfeita que desconta tempo gasto e mais etecetras. Há ainda as que traçam no pano as suas maravilhas de horas em passo certo de agulha, cenários coloridos a mão própria. E as que pintam em tecido e no papel, que fazem quadros e enchem telas, que arredam canecas e chávenas e nasce-lhes um estúdio na cozinha. E depois há pássaros e flores a escapar-lhes das mãos, caminhos e veredas que sobem até ao encanto de casinhas com telhado vermelho e fumo na chaminé. E assim se gastam as mulheres, em recato e pacatez, a criar intervalos no seu imenso tudo, elas a afirmarem, naturais, não vejo televisão, não tenho tempo.
Entretanto, o que fazem os homens?! Pois, não sei, acho que têm um tempo importante cheio de tarefas e trabalhos urgentes – mas um de cada vez -, e não pensam ainda em natais. Natal antes do tempo, é coisa de mulheres desocupadas, devaneio. Por isso, deixam-nas andar entretidas, contentes porque não lhes mudam os canais da sport-tv nos intervalos do futebol com  a desculpa maníaca, “deixa só ver o que está a dar”. E, no íntimo, pensam que bem podia haver um natal só delas e de ano inteiro. Aí sim, seria o descanso.
Temos ainda de considerar as mulheres sem dinheiro, as fanáticas por compras. Essas temerárias vencem quilómetros de loja: palmilham ao centímetro bancadas de camisolas e meias; palpam cachecóis e boxers; passam a pente fino as miudezas das poucas lojas onde lhes cabe a carteira; espiolham o canto mais escuso, onde quiçá existe sei lá quê ao preço da chuva; perdem-se a despir e vestir peças que destinam a outrém, a moldá-las de cabeça a um corpo diverso, solilóquios de vestiário que deixam sorrisos em quem passa, aqui é mais estreita, tem o pescoço mais alto, é mais baixa, é mais alta...

E tudo isto, veja-se, é um nico da vida feminina, uma unha do dedo mínimo, nos dois ou três meses antes de haver Natal.

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