sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

No Tempo da Escola

Ficámos a olhar a camioneta até a perdermos na dobra de uma esquina. Com ela partia o resto do meu mundo conhecido.  Estávamos as duas junto ao sinal de paragem idêntico ao da nossa terra: o mesmo fundo preto e uma camioneta branca desenhada no interior. E tudo, excepto ele e a caixa do correio, nos era estranho. Peniche recebia-nos com um amontoado de castelos cinzentos, sacudida de vento. Quedei-me choramingando, o lenço de mão de minha mãe contra a boca a estancar o sangue que ainda corria do lábio, o casaquinho curto desatado e sem laços que me valessem contra a nortada. Ela, em corpo, rodeada de sacos, a saia do vestido num badanal indelicado e promíscuo que a aflição dos olhos ignorava. Agarrei-lhe na mão e murmurei a medo, e agora, mãe, vamos por onde? Mas ela curvou a preocupação para mim, deixa ver como tens o lábio, e retirou o lenço. Depois, puxou da garrafinha de água que usava para matar a sede  no trabalho, ensopou uma ponta do lenço, disse, está quietinha para doer menos, e lavou-me a ferida com cuidado. Em seguida, beijou-me a bochecha de leve, ajeitou-me a franja e garantiu, vai deixar de doer, já está a inchar. E eu que tinha vindo a mirar-me desde o Terreiro do Paço,  esqueci o pavão e o resto. Dispensei as roupas novas manchadas de sangue, o cabelo aos canudos e que ficara outra coisa, a gengiva a doer e o golpe que me eriçava o lábio superior.
Mal nos percatamos, a vida vira-nos os intentos: num ápice, esquecemos propósitos e decisões com que sonhámos dias a fio e de que antecipámos a figuração real. Foi assim que me esqueci de mim, a dor em fuga depois que minha mãe lhe certificou rumo. Esperei a decisão a aglomerar, corpo contraído, apertando-lhe a mão quanto podia. O desconhecido impunha-se-me com tal sonoridade que me ensurdecia qualquer intento.
Olhámos em volta e não havia vivalma. Nas ruas desertas, cães sem dono, rabo murcho entre as patas, deambulavam uns atrás dos outros em vagar e tristeza como acontece a todos os seres sem caminho definido. Éramos nós duas, os cães e o vento que encanava a assobiar, as copas das árvores numa espécie de viuvez lamentosa, ai que desgosto. Eu transida com o  sofrimento delas em choro convulso que dobrava ramos e folhas só para um lado. E a insolência vociferante do vento  a sacudi-las. Ouvi os troncos aos gritos de aguentem-se, tem de passar, vai passar como aconteceu de outras vezes. E as folhas a derrubar, algumas em estertor de velocidade destrutiva, o corpo a escalavrar,  embatendo de chapa nos refegos de parede, ombreira de porta, quina de janela; ou sugadas por um esgoto, um buraco a céu aberto, um rego de água que até podia ser do mar, mas as afogava na mesma. E enquanto eu assistia este filme, minha mãe em solilóquio, é dia de Natal, quem é que anda nas ruas com este gelo? Só quem precisa. Como a gente. E depois de uma hesitação, anda, lá à frente há um toldo, deve ser um café ou uma taberna. Se estiver aberto, perguntamos para que lado é a prisão.

Olhei a correnteza de casas e, já na segunda metade da rua, mais revolto que as camisas que ela sacudia antes de estender, o toldo torcia-se como criança sob vergasta. Observei-a com orgulho. Minha mãe era tímida, de parca e sábia conversa e tenacidade inquebrável. Num acordo sem palavras desatámos as mãos, ela pegou os sacos e segui-a a acertar o passo pelo seu, pesado do carrego. O vento empurrava-nos e, assim ajudadas, o abalo da friagem pouco nos tolheu. O meu lado infantil entrou resoluto ao barulho e desfazia-se em riso e diversão, eu quase levada ao colo pela ventania, cabelo  a cegar-me e fazer tropeço nos calcanhares de minha mãe que avisava, com essa palermice toda, ainda me descalças e cais. Nesse momento, pensei no Luís e em Lídia e como seria bom estarmos ali os três, conversarmos a viagem inteira e talvez virarmo-nos para o vento e andar de recuas a ensinar o caminho ao diabo. À medida que nos aproximávamos, enrijava o ruído do toldo a sacudir-se de vento. Avancei numa corrida e depois de uma espreitadela gritei a minha mãe, está aberto. E deixei-me ficar de cara ao vento, o cabelo a voar por junto para a nuca, roupas desfraldadas. Sem alterar a passada, ela veio chegando, ralada de rins e mãos. Pousou os sacos e pôs-me a guardá-los. Depois, levantou a pesada rede de pesca que resguardava a porta de insectos e coscuvilhice avulsa, e entrou. Contrariada nos meus intentos, amuei junto à bagagem.

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