A
música não é apenas um arrebatamento de alma. Ela tem efeito de chuva: lava e recupera fulgores de
brilho originário, mata os mil seres nocivos e minúsculos que zanzam em volta
de cada um e comicham o âmago. É nutriente essencial, água que cai na terra a ensopar.
Somos
barro que se reavê na música. Encarnado o verão áspero e seco, chegamo-nos a
ela rotos e de fendas escancaradas. E a música invade docemente, toma-nos sem
pedir licença, insinua-se como amada coleante. É bálsamo que apazigua os males
de viver e unifica os homens, a devolver-lhes
plasticidade. A harmonia musical tem a suprema virtude de entranhar sem peso, dilatando
o espaço. Quem sabe, somos apenas a amplitude onde paira.
Gosto
dos concertos de domingo na Gulbenkian. Parecem-me mais caseiros, as crianças
acompanham pais e avós e há um burburinho de vida no início e no fim. Os
perfumes fortes estão mais atenuados (não sei que dá às velhas senhoras para
usarem odores tão terríveis), as poupas de laca são menos poupas, as peles e
jóias existem em comedimento recolhido, os “olhem quem ele é”, ausentes ou em
pacatez de laços famíliares. Somos anónimos uns dos outros e só a música
sobressalta, é esdrúxula. Que, de
ouvido, sou criança: não entendo nada e só gosto. Ora estes concertos para famílias
são breves – cerca de sessenta minutos sem intervalo – e, no início, alguém
explica às crianças (e a mim) o que vai acontecer – conta a história do que se vai ouvir -, identifica alguns instrumentos e ensina pelo menos uma
particularidade da música clássica. É claro que escuto em esponja e as
explicações me deleitam, é um admirável mundo estranho. Bom. Cabe-me divulgar
outro factor agradável, são concertos mais baratos. Desta vez, a orquestra tocou
três peças distintas, a primeira, de Mozart, sonoridades com ar travesso e
saltitante a fazer lembrar o garoto irrequieto do filme Amadeus; A segunda, de
Stravinsky, pareceu-me ainda com poucos traços russos, mas posso estar
enganada que sou leiga; e a terceira de Mendelssohn, inspirada numa viagem a
Itália cuja beleza o impressionado compositor musicou e é um esplendor
soalheiro. E não sei qual prefira, em todas me senti ungida de divindade.
Tinha um resumo de cada que já perdi e estou incerta quanto ao
solo de violoncelo com o violoncelista de Matosinhos (Talvez em Stravinsky). Amei. Se for para um céu, qualquer que ele
seja, prescindo das harpas e da plangência dos violinos que sempre me parecem
muito cheios de nuvem e sonho, duas belezas frágeis por contacto com a invariância
tosca da matéria. Antes prefiro a afirmação melancólica e arrebatada dos
violoncelos que mais me parece perdurar e a evocação campestre das flautas
pastoris.
Que o meu céu é espaço aberto, respira-se. E ox-Alá.
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