quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Dever e Haver

Há demasiadas coisas neste mundo que não entendo. É certo que a maior parte se deve a ignorância, mas há outras que me perplexam, não sei como as deixam acontecer.  Em rigor, não são coisas que aconteçam. O que acontece atinge-nos sem apelo, não está nas nossas mãos evitá-lo. Ora, o facto repetido com que me venho deparando é evitável. 
O ponto é que reparo cada dia mais que, colóquios, conferências, congressos, não têm público. Os congressistas e oradores são público uns dos outros. À vez, são oradores, público e perguntadores de serviço. Parece-me um trabalho viciado. A maioria lê a sua comunicação sem levantar os olhos do papel. Meus deuses, se um professor normal desse aulas assim, os alunos fugiam-lhe da sala. Será por isso que não têm público senão eles mesmos?! Já estive mais reticente quanto a esta hipótese.
Bom. O acaso fez-me assistir a um congresso todo entretecido de gente estrangeira. Pois meus amigos, vieram aquelas alminhas de tão longe, um discurso preparadíssimo. Para quase ninguém senão eles. E segundo ouvi enaltecer pela mesa, vai constar em acta (as actas devem ter passado a dar estatuto e por certo propiciam subidas de grau). Mas o que querem, sou antiga, acho triste tanta cadeira vazia, parece-me um desalento falar apenas para os pares. Lembra-me um certo cão que tive que mordia o rabo e gania para que eu o fosse salvar. Ao cão eu libertava da autotortura, a esta gente, confesso, não tenho maneira. Mas é verdade que eles não se queixam.
E no entanto continuo a julgar puro desperdício que muita gente não aproveite aqueles sábios ali tão à mão e o benefício de óptima logística (estive malzinha mas isento a cadeira). E tudo grátis. Até os lanches com bolinhos e café mais sumo e chá, (logo agora que não me apetece nem o cheiro de comida). Pergunto, o que é feito dos reformados santo Deus. Não foi há muito que estive num auditório cheio deles e todos muito interessados. Ali mesmo, na Gulbenkian. Mudaram-se para os concertos de música clássica, está visto.
Portanto, concluo que ter público é, hoje, supérfluo. Que vida estiolada têm os sábios. E no entanto, alguns são, em demasia, iguais à outra gente. Senão, reparem nesta flor. Um dos temas abordados foi a biblioteca de Pessoa. Influência de leituras, se sublinhava, anotava, onde, em que obras, o quê. Constatação de um personagem que na altura fazia de público, reparou que ele tinha o Kamasutra... - e em ar suspeitoso e meio malandro para a jovem oradora - ou não viu?! Perante o assentimento, viu o sublinhado, aquele sublinhado era diferente, muito mais suave... E tal e tal. E a oradora que nem tinha feito referência ao livro, pois, mas não tinha anotações, era um sublinhado curto num livro inteiro... E ele jubiloso, triunfante mesmo, pois eu dei três voltas ao livro a ver se descobria uma nota ou mais alguma coisa – e num aparte -. Que nem era um Kamasutra de jeito.

Meus senhores, eis um artista português.

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