quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O Fogo da Nossa Desgraça

No rescaldo dos fogos de 15 e 16 de Outubro, ainda movida a sentimentos e emoções, não consegui escrever. Talvez por me antever no papel dos desgraçados, entraram-me uma tristeza e revolta monstras. Pelos que morreram ceifados pela calamidade. Sozinhos contra o fogo. Impotentes. E por quem ficou, desamparado de tudo. Conheço esse desamparo de viver de empréstimo, sem que nada seja nosso, à mercê de bondades estranhas e boas vontades tanta  vez apenas iniciais, que ser bondoso durante muito tempo cansa, e, a breve trecho, familiares e amigos desejam voltar a lugares marcados e a sentir que a casa é apenas sua. Mas não sei o desespero de “Tudo perdido”. E não contabilizo a dor pelos mortos que é dor por faltarem e dor pelo horror que viveram e que ninguém, nem o ser mais vil, merece. Penso nos que ficaram porque o futuro se faz com eles. Nos pobres desalentados, mãos a abanar, incrédulos do infortúnio. Gravou-se-me o olhar sonâmbulo daquele homem pegado aos escombros da casa e dos barracos, tudo negro e informe em seu redor, mal acreditando no absurdo, como num pesadelo, nem um martelo, nem uma enxada, nem um trator; ardeu tudo, não tenho nada. E a gente a ouvir e a saber que estava a auto convencer-se da extensão de vazio.
À medida que os anos correm sobre nós e que a vida e os homens nos contrariam, vamos aprendendo que o pouco que temos nos é tudo: a cadeira de sentar, a cama que o corpo deseja para o repouso, a chávena do chá ou o café da manhã. E há a janela de espreitar os avanços do dia que se espreguiça ou corre em lufa lufa, as manias da porta das traseiras, o som dos passos que são distintos nas diferentes partes da casa. A história de cada um enleia na de todas as coisas que são suas e lhe fazem falta.  São os pequenos nadas que os olhos necessitam, objectos comezinhos que têm lugar de anos no cenário. E assim acontecia antes do fogo. Também eles tinham a sua casa, animais domésticos e de trabalho, alfaias agrícolas que compraram a juntar as notas umas atrás das outras, a guardá-las semana a semana, mês a mês, sacrificando sabe deus o quê, porque um trator faz falta, porque o reboque, porque a segadora mecânica, a tratorinha que baptizaram com um nome terno por ser maneirinha e caber onde os tratores não entram. E perderam família, a casa, os haveres.
Neste oceano de desgraça, o Estado fracassou humanamente. No vigor da calamidade imprevista, tratou todos com desrespeito. Quem fala assim do seu povo trai a sua confiança. Em situação de desgraça, não se atiram razões e culpas, oferece-se compreensão e ajuda. O que se ouviu foi indigno de representantes do povo, gente eleita por ele e que lhe deve protecção. São os portugueses quem lhes paga o ordenado, mereciam o seu apoio incondicional desde o início. Mais tarde, o governo emendou a mão, pediu desculpa, mexeu-se para trazer futuro a quem dele precisa. Mas é no ardor da provação que conhecemos as pessoas. 
E há as árvores. Hectares e hectares ardidos. Muitos milhares de hectares de floresta sacrificada (quinhentos mil). Uma razia que nos trará consequências nefastas e a vários níveis e de que nem é bom falar nesta hora que tem de ser de reconstrução.  O fogo quase extinguiu o pinhal do rei. Mandou plantá-lo o rei poeta e de vistas largas, para segurar areias marítimas, assim o estudámos nós. O pinhal de Leiria era de todos os portugueses e não apenas dos leirienses. Oitenta por cento, ardeu. Não veremos formado o novo pinhal. Mas que o plantem. Que o plantem! É incumbência nacional. Que a história se recrie. E os portugueses, senão estes outros serão, o olhem lembrando ainda esse D. Dinis de grande alcance e os versos dos poetas que o cantaram, imaginando no rumorejo dos pinheiros o som futuro das caravelas velejando.

 Não queremos ficar encalhados e ajudamos no que podemos. Essa gente martirizada há-de navegar. É dever nosso interessá-los, trazê-los de volta ao mar da vida.

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