terça-feira, 28 de novembro de 2017

A Terceira Irmã

        E as mulheres bichanaram escândalos sobre o abuso e a possível paternidade. Desandei estupefacta, imersa em tal murchidão que minha mãe, então filha, gravidez não é doença, era pior se fosse doença grave. Mas nada me consolava. Que o processo da gravidez não me atazanava, pouco entendia do mistério de uma vida a crescer na barriga e nem me interessava tal assunto. Moía-me, isso sim, que houvesse homem ou rapaz tão tortuoso capaz de abusar um ser como ela. No meu íntimo crescia o vómito, não acreditava que rapaz, avaliava que o animal era homem casado e malvado. Homem feito só de corpo; que no resto, monstro. A rapariga não era uma oferecida, apenas não tinha juízo, pensava como criança e todos o sabiam. E, a cada domingo, à medida que o tempo passava, a tristura do pai mais me arraigava a má vontade contra um desconhecido que, se dependesse de mim, seria sovado em hasta pública. A descansar-me, imaginava-o a ser castigado com chicote, preso a um poste no meio do adro – que nem tinha poste nenhum – rodeado a toda a volta pela gente da aldeia. Suponho que a raiva me acordou imagens dos poucos filmes que tinha visto.  Mas nada disto aconteceu e o pai continuou incógnito. Ao invés, à medida que as visitas do médico a casa do Vicente se faziam menos espaçadas, começou a correr que havia problemas com a gravidez. Depois, disse-se quase a medo que a futura mãe, que jamais alguém viu grávida, ia morrer quando desse à luz por sofrer de epilepsia. Sabedora de exageros e cuscuvilhice de aldeia, ignorei. Os nove meses passados e a minha amiga voltava aos lugares de sempre. E íamos gostar de vê-la com um bebé. Era assim que eu pensava.
Mas quando os nove meses passaram e o parto se consumou, ela morreu. Deus revelou-se-me de uma injustiça terrível. Hoje demoro-me a pensar quanta coragem foi necessária àquela gente para aceitar a antecipação da morte, viver sabendo que a filha lhes morria no final. Nove meses de dor e inferno. A assisti-la. Não fomos feitos para saber quando morremos. Em que dia. A nossa amiga era criança, gerava um ser que a consumia e lhe diminuía o tempo de vida à medida que se formava dentro dela. Facto que, por fortuna, desconhecia.
Ora um dia observei na mercearia umas perninhas vermelhas que corriam atrás da mulher do Vicente. A bebé que ficara. Uma garotinha de nada, magrinha, que da mãe tinha apenas o azeviche do cabelo. E as mulheres umas para as outras num alívio, é espertinha...
Estranhos são os caminhos que a vida toma.
            Entretanto, saí da aldeia. Quando voltei, Vicente mudara de emprego e de lugar. Nas cidades e vilas que também eu percorri, não encontrei qualquer membro ou referência à família. Perdi-lhes o rasto. Esqueci-os. Quando enfim assentei arraiais, soube que Vicente se reformara e vivia na mesma terra com mulher e neta, as filhas casadas algures. Que a garota era luz nos seus dias e desejava vê-la casada antes de fechar os olhos. Nunca sequer os vi. Soube que a neta casou e alegrei-me por ele que devia a essa altura ser bem velho. Não muito tempo depois, morreu.

Decorreu um ano. Talvez dois. E comecei a cruzar-me com uma jovem desconhecida. Trazia um cão à trela. E os dois a passear estrada acima e abaixo. Desde o primeiro olhar soube que era ela, a garotinha de pernas de perdiz que corria atrás da avó. Hoje, passam-me à porta. Ela e o cãozito. O casamento falhou. É ainda jovem e bonitinha, nada semelhante a sua mãe. Se a vejo passar ou encostar no muro tenho vontade de chamá-la e trazê-la para dentro. Contar-lhe coisas boas que sei. Mas nada faço. Apalermada, deixo-me ficar ao vidro num desperdício de ternura. Podia quase ser minha filha. Está só. Nunca lhe vi sorriso, que nem isso a mãe lhe passou. Caminha átona ao mundo, atenta ao animal e ao saco das compras. Talvez afinal tenha herdado alguma coisa mais por via materna, alguma coisa que não lhe dá benefício. A identidade do pai permanece em mistério. E hoje que conheço um pouco mais da vida e das famílias,  sei que há podres demasiado podres só de pensá-los.  

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