sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Un Copain




Coube-me em sorte estudar num colégio religioso para raparigas, única escola da minha terra. Foi uma bênção do Olimpo a esta humilde servidora e, na corrida das preferências, o colégio continua desmarcado. Era um mundo bem diverso do meu, com tudo no lugar, tempo em que vivi aristotélica e organizada, as coisas a tenderem para o seu lugar natural. As minhas freirinhas vestiam hábito e, para mim, espreitava-lhes uma aura sobre a cabeça, o que aguçava a graça natural das poucas professoras laicas que nos entravam vida dentro. Vida, pois. As professoras – com ou sem hábito - eram parte da minha vida. No terceiro ano, a novidade da disciplina de inglês trouxe-me uma nova mestra; e de imediato me tomei de amores tumultuosos e birrentos pela paciente jovem. Lembro-lhe as pernas finas e elegantes em estalidos de ossinhos, enquanto passeava a delicadeza dos sapatos entre as nossas carteiras, eles impantes, Olá, como estão. Aturdíamos no mistério das meias de vidro que desapareciam no alabastro das pernas e nós em dúvida acesa umas para as outras, traz meias?, e logo as mais sábias, se não trouxesse, a irmã directora não a deixava nem entrar. Descansava-me a voz calma, a juventude da pele, a ternura verde do olhar. Uma Miss. Que ainda por cima me passava à porta, sentada muito direita, ao volante de um carro verde comprido, moldura adequada ao etéreo da sua beleza. O máximo. Faladora inveterada, tornei-me a tagarela das aulas de inglês, o resto da turma ainda imerso no fascínio francófono e em retaliação a rudimentos de conversa anglo-saxónica. Aplicava-me de gosto na disciplina, estudava a fonia das palavras com o empenho de um cientista ao microscópio, mas, se a professora me calava ou ousava interessar-se por mais alguém, do meu ressentimento de birra nasciam aulas tumulares. Quando mais tarde a reencontrei, o único que recordava de mim eram as birras. Portanto.
 Uma manhã, a D. Maria Luísa abriu a aula com uma novidade: ia oferecer às três melhores alunas o endereço de garotas francesas que se dispunham a ser nossas copains, palavra que só valorei depois de lauta correspondência. Não entendi por que razão as garotas haviam de ser francesas e disse-lhe isso mesmo, no despudor de inconveniência que ainda hoje me caracteriza. Ela corou, baralhou-se um bocado, falou-me de outra escola e mais não sei quê que já perdi a esperança de entender e passou à frente. Influenciada pelos Corín Tellado das minhas tias, logo imaginei que o rubor tinha a ver com um amor qualquer que, manda a honestidade, nunca descortinei.
Fui a última a escolher. Desdenhado  pelas minhas colegas, o endereço da Bernardette sorria-me de um papelito dactilografado. Agarrei-o satisfeitíssima. Mal sabia a francesinha com quem se metia. Como diriam as minhas queridas professoras, Maria Auxiliadora dos Cristãos!, apelo que me trazia à memória grandes e renhidas lutas de cruzados. Pelo que, sendo esta a sua exclamação preferida, o colégio encontrou-me sempre a cerrar fileiras. Um soldado. Mas gostei. A Valer.
Ora, um dos meus maiores prazeres é a escrita de cartas. Escrevia cartas às minhas avós, a encher folhas e folhas de que elas duvidavam, habituadas ao estilo telegráfico de outras escriturárias. Mas, na volta do correio, as pessoas agradeciam sempre as novidades tão de pormenor e eu bem via o contentamento em que os olhos lhes ficavam. A minha técnica era simples, esperava o assunto (a escrita das cartas também daria bons posts) que germinava lá dos fundos e me secava a tinta no aparo. E quando elas saiam do anh, anh,anh… mergulhava a caneta no tinteiro e, borrões à parte, escrevia a meu modo, a carregar de letras linhas e espaços brancos, até abalroar as duas folhas. As margens eram-me obtusas e invadia-as de assunto. E de certeza, misturava frases dos romances que lia, no quotidiano ditado. Esmerava-me para gente que nunca soube quem era, num tempo em que Portugal me parecia enormérrimo. Lembro-me de uma prima que morava no Vale de Santarém, que eu calculava ser o fim do mundo. A palavra vale sugeria-me um lugar muito fundo e só presente depois de subir e descer grande quantidade de montanhas – ai a minha geografia - e a minha avó encompridava a distância a garantir, é muito longe, ela coitadinha não pode cá vir. No meu imaginário, a tal prima perdia-se se tentasse. E agradava-me escrever cartas para o fim do mundo. Imaginava o caminho da carta, a ir, a ir, a ir….
Portanto, ter uma copain foi um benévolo acontecimento. Encheu-me de ideias solares e conversas de mim para mim ( converso muito comigo). Tudo em francês.
E se o Vale de Santarém já era longe, imagine-se a França.

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