segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Avó Luísa


Em primeiro lugar, estou à vontade porque a avó Luísa se chama outro nome, não sabe ler, nunca mexeu num pc e não imagina que alguém a queira de assunto. Em segundo, estou à vontade porque não é minha avó e menos ainda suspeita que eu escreva o que quer que seja, sem ser o de obrigação. Em não sei quantos lugares, estou à vontade porque este espaço é meu e faço nele o que muito bem me apetece. Acima de tudo, tenho enorme prazer em pensar e escrever sobre a doce velhota.
A avó Luísa é o meu protótipo de avó. Se penso numa avó, é ela que me aparece na cabeça. O único conto que escrevi tem uma avó Luísa, roubada à minha avó Luísa que nem é Luísa, nem é minha avó. Sou pródiga em relações familiares com quem não me é nada. E também em não ser nada a quem me é do sangue. Os meus afectos desligam-se da consaguinidade e distribuem-se por onde calha, de acordo com as inclinações que Kant condenou.  Os filósofos são grandes pensadores, homens de respeito, sabem o que dizem. Mas, no restante, apostaria que vivem parecidos a nós. E, quem sabe, comungam dos nossos desaires de viver. A verdade é que aquilo que somos não nos vem só de o conhecermos.
A minha avó Luísa não sabe o que é a filosofia, mas filosofa. É uma morena de óculos bem graduados e olhos longínquos e meigos, tornados assim de tanto olhar e compreender. Tem o esqueleto dentado pela osteoporose, os braços, pulsos e joelhos partidos e mal colados várias vezes. Nela existem erros médicos graves que a afligem de dor constante, a impedir movimentos ad aeternum. Temo que caia por onde se movimenta em cautelas de bengala. Vive ainda em sua casa, com o marido que tudo lhe faz. Após tanta queda e operação, não consegue sequer lavar loiça. Visito-a e abre um sorriso bonito, que me faz valer os passos. Porém, sofre imenso. Mostra-me os aleijões da artrose, inchaços inexplicáveis do corpo, um dos joelhos igual a uma bola de basquete. Sem uma queixa, os olhos muito sérios fixos nos meus, lábios apertados num veredicto de imutável, mãos púdicas a subir meias e a baixar a saia. Chamo-lhe avó com o prazer de a ter escolhido para sê-lo, mas ela trata-me com alguma cerimónia e já lhe fiz notar que não é modo de falar a uma neta. No seu coração, não sou igual às netas. Ou sequer às bisnetas.  Mas a indiferença não consegue tal alegria. A avó Luísa carregou no colo um dos meus filhos e nunca se esquece de querer sabê-lo. Certa vez, ainda mal a conhecia, trouxe-me um pombo já depenado, para uma canja. Vinha embrulhado no avental, como se fosse nada. A minha avó Luísa dá e quase não se vê que estende a mão. Várias flores do meu jardim encontrei-as à porta, pela manhã ou tarde, sem saber do dador. Depois, passado algum tempo, contava-me que fora ela.
A avó Luísa tem a minha atenção de amor. Se um carro à sua porta, corro a saber o que se passa. Dá-me ramos de salsa, fala-me dos regos das couves e do cebolo, conta-me proezas da descendência…e não se queixa das dores, de quase não poder andar, de tanta vida que deixou atrás.
                E gosto de estar com ela a apanhar um solinho, viradas à horta em simetria; olho-lhe a artrite dos dedos, as sardas das mãos a pintalgarem o regaço. E a minha mente espreguiça-se no desejo de ser empírica e devir incólume folha branca. Em paz.

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