quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Escrita a Duas Velocidades


Pensamo-nos seres originais e novos. Mas não. Somos quotidianos, feitos para uma linha melódica de continuidade, o anterior a preparar o seguinte. Por isso, sempre que os imprevistos nos tomam de assalto, a mente devém um buraco agressor de agitada incompreensão e não saber, a nova afirmação apenas sons estranhos numa língua desconhecida, nós a duvidar da inteligência enquanto as palavras, ensaio de um pequeno caos, dançam cá dentro sem significação. Devem ser apenas segundos, mas parece-nos este rodopio muito tempo. E mal encaixam no lugar certo, a normalidade. As minhas irmãs expectantes e eu mão no travão, no impasse de entender. E logo que, o quêêêê???!, onde é que está a carta? E larguei a bicicleta no caminho. Corria e ia anotando as informações, está na cozinha pequena em cima da mesa. E era uma carta bonita. Tinha selos às cores e um envelope de papel grosso que os meus dedos correram ao comprimento e à largura, impressões digitais em cada milímetro.
Galguei até ao quarto, sentei-me à secretária com o dicionário de francês-português à espreita, e li-a de ponta a ponta. Na primeira página, a Bernardette tinha escrito a sua alegria e contava a odisseia da missiva.  Os selos estavam errados e a carta ficara retida, com multa, nos correios. Entretanto, ela mudara de casa. Quando o pai passou na estação de correios para saber se haveria correspondência para o antigo endereço, o funcionário mostrou a minha carta; porém, ao vê-la, ele recusou-a; estava multada e desconhecia o remetente. Mais tarde, talvez ao jantar, contou o episódio; deslembrada do que fosse, a Bernardette intrigou e, no dia seguinte, passou lá, pagou a multa e satisfez a curiosidade. Foi assim que o destino me cumpriu os intentos. Teriam passado uns três meses. Do outro lado da folha, pacientemente, “a francesa” respondia todas as minhas perguntas e enviava-me uma foto. Muito loira, olhos azuis, gordinha. O meu oposto. Achei-a o máximo. Depois de a ter relido várias vezes com o coração a transbordar, condescendi em ler para as minhas irmãs que ouviram tudo debruçadas no meu ombro para ver a letra, não sei para quê, não sabiam qualquer palavra de francês.
Orgulhosa daquela amiga francesa, fui ter com a minha mãe que andava a trabalhar na cova e li para ela. A mãe não parou o trabalho nem fez qualquer comentário. Mas eu comentava pelas duas, a fazer intervalos na leitura sempre que me apetecia. Ela sachava o feijão frade e eu lia a deslocar-me ao mesmo ritmo, os sapatos a asfixiar no pó que o sacho ia levantando, coisa que me não apoquentava. A mãe, chega-te para lá senão faço como o Nardito, corto-te as pernas. Eu desviava uma perna e continuava a ler quase em cima dela. De vez em quando abraçava-a a garantir de viva voz que a gostava muito e ela num sorriso, deixa-me chata, assim nunca mais acabo isto e é quase noite, vai-te embora. Fui sempre muito mal mandada, portanto só subi a encosta quando já tinha lido tudo. No meu egotismo, nunca pensei em ajudá-la nos tantos trabalhos que tinha. E o seu cansaço notava-o apenas quando, sentada à lareira por minutos, logo adormecia. Nessa época, via um futuro endinheirado onde não a deixaria trabalhar senão o que lhe apetecesse, lhe daria prendas infinitas, todos os meses várias. E a vida calada. Sem desmentir. Foi assim que cresci durante quinze anos, as mãos dela a afastarem-me todos os escolhos, a fazerem caminho onde passasse.
Nessa noite, fiz os trabalhos do colégio à pressa e deitei-me mais tarde. Não consegui esperar pelas folhas de carta da mercearia e respondi à Bernardette em folhas de caderno e de imediato. Não tinha fotografia para a troca, mas não me importei. De manhã, levei as duas cartas para o colégio e a Bernardette foi o assunto das conversas. Com tanta novidade, a aula de inglês correu como gostava, falei pelos cotovelos.
À medida que o tempo ia passando sobre nós, verifiquei que eu respondia na volta do correio e a Bernardete era infindavelmente mais demorada. E nunca isso me desanimou. Sem qualquer incidente, mantivemos contacto a duas velocidades. A francesa passou a habitar o vocabulário de minha casa e no colégio foi absolutamente esquecida; das três correspondentes, era a única que se mantinha e ninguém se interessava em demasia pelos meus assuntos, o que nem me aborrecia, a Bernardette deveio toda minha. Ainda hoje conservo esse princípio: se o que dizemos desinteressa os outros é melhor calá-lo, não vá o assunto ofender-se de não ser escutado. Não somos desimportantes aos outros. São os assuntos de que falamos que não lhes interessam.
Passaram anos. Saí do colégio. Fiquei um ano a descansar em casa. Voltei a estudar. E nas férias dos meus inconscientes dezassete anos, recebi uma carta da francesa. Que estava em Braga com os pais, na quinta da Galinha Assada, de que ainda hoje só sei o nome. Queria conhecer-me. Perguntava se podia vir a minha casa.
Sem mais pensar, respondi imediatamente que sim.

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