terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Grão de Areia



Podemos nem reparar, mas sempre que pensamos em alguém, a razão não o isola. A memória  liga, une. Ninguém nos surge na mente sozinho e em si mesmo, cada pessoa arrasta um conjunto de atributos, verdadeiros ou fictícios, que lhe apomos. É por isso que, se penso no meu pai, não lhe penso o automóvel mas a zundap que já não tem e, se acontece passar de carro por mim, abro em estranhezas, quem será aquele senhor que me acenou; anexo os gritos e as cóleras súbitas que nos assustavam (ou me) e que ainda treina por desfastio e eu um continuum desagradado; e vislumbro o seu jeito sério que ganhou olhos de horizonte – as pessoas quando vão para a idade vestem esse olhar, como se já não estejam inteiras na terra e exista nelas uma nostalgia de tudo que é, em função do não ser que há-de vir. Ou a consciência da saudade que não vão ter. Os olhos do meu pai podem ser duros como aço, cortar como faca afiada no lugar que mais dói, mas não são olhos lúbricos, malvados ou escarninhos.
Às vezes, que são agora mais vezes, visito-o, dou-lhe pequenos nadas que sei que gosta. Ele não visita. Excepto quando há uma doença que considere grave. Uma vez adoeci e entendeu que. Aparecia ao domingo de manhã, quando estava sozinha, a fazer-me as suas próprias queixas e distraía-me um pouco das minhas. Porém, se elas me tomavam de assalto, ele torcia as mãos de desconforto. Gostava dessas visitas de médico em que chegava cheio de pressas, a anunciar que tinha de ir a um sítio, me dava um beijo rápido e, então filha, estás melhor, e depois a meio do quarto, muito interessado na janela, até que eu, pai sente-se aqui ao pé de mim. É assim, o meu pai. Cumpre o dever, deixa-se afectar pelo sofrimento, mas não consegue mostras. Vi-o chorar duas vezes. Soluços grandes e quase sem lágrimas, de costas para mim, o rosto entre os braços encostados numa parede. Imagino que possa ter chorado mais vezes. Talvez. E já vivemos juntos difíceis estrangulamentos de ampulheta.
Noutras ocasiões, encontro-o em serviços fúnebres, como se nós velhos conhecidos ou familiares mais ou menos distantes. E sou eu que o vejo, os olhos de horizonte cavalgando a figura hirta de silêncio, boné na mão, nunca dentro das igrejas. Junto-me a ele. Penso que o meu pai tem um certo orgulho em mim, mas não sei se alguma vez que eu o não repare, ele se aproxima. Há pouco tempo, encontrámo-nos assim, acompanhei-o e deu-me, depois, boleia. Quando me deixou, meteu a mão ao bolso e ganhei uma chave do portão. Lembrei a quinta a que chamamos “a nossa terra” e nome que mais lhe quadre, não existe. Os vizinhos erguiam muros e vedações e a nossa terra à solta. Ainda assim, dizíamos, vou até ao portão, parei ao portão, a mota do pai caiu quando virou ao portão (e quanta vez aconteceu). Mas não havia portão nenhum. E agora, que já foi para aí há uns dois anos, só por causa das coisas, o meu pai pôs mesmo um portão no que era só o sítio. Fiquei a olhar para a chave e a pensar nisto tudo ao mesmo tempo, o meu pai atrapalhou-se com ter demorado dois anos a decidir dar-ma e gaguejou umas explicações, mas eu pensava no portão imaginário, sem grades nem limites. E enchi-me de pena da terra feita poeira queixosa, em remoinhos cinzentos, num isolamento sem destino. Depois agradeci e tratei de o descansar, na verdade não esperava tal chave. E despedimo-nos como se eu uma miúda, não percas a chave, ouviste.
Portanto, se o visito, saio do carro, abro o portão, entro de novo, passo, saio para o fechar à chave e sigo até à casa. E à saída repito tudo. O meu pai fica no meio da rua a ver a manobra. Todo importância, como se o portão uma coroa. E palavra que não entendo para que serve este enredo. A vedação da quinta é baixa, tem malha larguíssima e já rebentou em vários pontos. Ainda assim, o meu pai exige a toda a gente que feche o portão à chave por causa da ladroagem.
Na última visita, avisei-o e já me esperava como quem não quer nada, conversando com a vizinha que por acaso é minha tia, a deitar rabinhos de olho ao portão. Gosto que me faça lumes e sempre lho peço, apesar de me ser difícil a televisão com o som no máximo. É um dia. E logo me disse que não tinha feito o lume, estava calor. Era verdade, o dia pedia rua, a brancura de braços e pernas às espreitadelas, a avançar confianças e despudor de decotes e brechas na tepidez do dia, gratos ao sol e aos ardis da brisa. E ficámos conversando por ali. Depois calcei as botas de borracha dele e, de saudade, fui apanhar laranjas e tangerinas a falar com elas e com as ervas que quase me chegavam à cintura. E o meu pai na rua a ver, talvez contente. Quando deixei os sacos de fruta no porta-bagagens, ele recusou lanchar connosco e foi para casa. E nós, eu e a minha tia, para a mesa. De repente, o meu pai a chamar-me da rua. Fui ver. Toma lá para o lanche, e quase fugiu para casa. Era um pacote de bolachas de baunilha. O meu pai. Que, em pequena, me deu coisa nenhuma. Tem vezes em que o amor é simples.


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