quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Viagem a Tóquio

O quotidiano não me aborrece, põe-me à vontade, nascemos um para o outro. Se temo encontrar alguém, peço a Deus que me apareça de chinelos, avental, barba por fazer, sapatilhas, sem grande jeito de pente...e, raciocínio retardado que tenho, só há poucos anos compreendi que as pessoas no seu normal, não aperaltadas, me assustam menos. Todo o aparato, por pequeno que seja, me tolhe e embioca. Mas o filme Viagem a Tóquio seduziu-me: é calmo e deixa espaço para pensar entre os diálogos; as mulheres, todas de tornozelos grossos, andam descalças pela casa e de avental o que me deixa à vontade; não tem violência, guerra, armas de fogo em vómito mortífero, sangue a esguichar. Não. Como o título indica,  é sobre uma viagem a Tóquio:  um casal de velhos japoneses de visita à prole que não vêem há anos e a uma cidade que nunca viram. Têm ainda com eles a filha mais nova, solteira e professora na aldeia, que os ajuda a preparar a partida. Não há objectos atirados à pressa para as malas, roupas mal dobradas, esquecimentos inoportunos. Há tempo neste filme. Ou, sobretudo, nesta casa. E haver tempo é um láudano, acalma o espectador. Que o tempo dos filhos, contrário à expectativa, vai revelar-se uma mini saia. Os dois velhos partem esperançados e, depois de viagem bem comprida, chegam na ilusão de ver Tóquio. Não tanto por desejarem conhecer, como para saborearem o amor filial que, supõem em amoroso agrado, se desvela a guiá-los  pela cidade desconhecida. Mas os netos evitam estreitar relações e sofrem mal a intrusão dos avós que lhes impede  as rotinas comodistas. E os filhos, após a recepção inicial, vão-se esgueirando, desculpando com a vida e o trabalho. Não passeiam os pais e acabam mesmo por decidir enviá-los para um barulhento hotel de termas onde falta tudo que necessitam: descanso, um quotidiano organizado, o carinho que demandavam. Ambos concluem que a cidade lhes mudou o amor dos rebentos, já não são os mesmos filhos que criaram. Eles, os dois velhos, são peso que se emponta.  E decidem regressar a casa.
Mas, no meio do desamor, por entre as franjas da obrigação filial, surge a flor à beira do pântano: a nora viúva, uma bonita japonesa que os passeia e recebe na sua casa pobre como os filhos não fizeram nas suas mais ricas; que pede à vizinha as taças e o saqué para agradar aos sogros; que tira um dia de férias e passeia com eles. E quando, na ideia do regresso a sua casa, inesperados voltam das termas, não têm onde dormir. Ela fica com a nora que a recebe alegre da companhia e amorosamente a massaja, lava, serve e dorme a seu lado num bem querer genuíno que nos lava a alma. Que puxa das suas magras economias e lhe dá parte como prenda.  Sem cama, ele procura um amigo e erram de bar em bar, cada um com as suas desilusões  sobre a descendência a quem a vida mudou e esfriou o coração onde os pais perderam lugar.
Este filme existiu antes de mim, é de 1953. Mas tanto podia ser hoje! O certo é que os velhos se vão apagando na medida em que perdem utilidade. E ser para alguma coisa é função de máquina ou objecto. Não é função de pessoa. A família, uma comunidade cujo lastro são os afectos, perde a matriz e reproduz  a impiedade social. Copiando o filme, os filhos chegam para o funeral e vão embora numa pressa, sobraçando bens que querem para si. Não são de parar e ajudar a dor de quem fica, como fez aquela nora exemplar que floriu a noite de Tóquio para grata surpresa da sogra.
            Agradou-me o discernimento dos dois velhos: a sabedoria de conhecer em cada um defeitos e qualidades, de saberem e agirem sem alarde quando se sentem a mais, de valorizarem e serem gratos. Que, nos dias que correm, a gratidão não é um bem de consumo fácil .

Bem haja Yasugiro Ozu. E mais quem recomendou esta fita.

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