terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Coisas

Há dias de porta fechada e sentidos  embotados. Os olhos continuam a olhar mas perdem objecto, entregam-se ao fastio, vivem no pega e larga,  saltitando de uma coisa a outra. E as letras são hieroglifos paralisados nas teclas incógnitas de dedos. São dias dementes, sem um aceno de ideias,   sem o afã de frases que se desenham e redesenham a apurar o pensamento em  acinte de modista que ajusta tecido ao corpo, afunda aqui uma pinça, alarga ali uma costura. Nesse tempo, definitivamente, pareço outra.
A outra tem um lado experimental. Arruma, compra, lima arestas e dá um embalo na vida. Às vezes, queda-se a vê-la girar na ilusão de estar fora do movimento. Os sonhos têm nela a amplitude do momento seguinte, nada projecta e pouco pede. Essa mulher pré histórica e meia bicho, que me habita com força de raiz, é calma e talvez submissa. As mãos são-lhe tenaz operante e julgo que habita um mundo dextro e antigo, que não adivinha o advento das máquinas. É muito velha, ela.
Mas quando as letras me regressam e aos dedos apetece a artimanha das palavras, é nessa raiz de simplicidade tenebrosa que bebem. Ela é o meu esqueleto pobre e minguado. Tudo que vem depois, vem sobre ele.
Esta conversa toda surgiu a propósito das mulheres que o mundo me ofereceu ontem – o mundo gosta muito de mim e vai-me assim oferecendo uns bombons. A bem dizer o assunto nem sou eu nem a minha raiz australopiteca. Ora vejam e concluam o que bem entendam.
Ontem voltei à ginecologia e a consulta deslizou, a médica foi simpática e não zarpei para o lugar dos horrores, os exames estavam nos trâmites... a senhora entretida a digitalizá-los e pergunta, quem é o seu médico? Eu estática e meia atrapalhada, qual médico, o clínico geral? E ela impaciente, como se eu criança pequena, não, o seu ginecologista. Eu apanhada de surpresa e palerma de todo, a minha ginecologista é a doutora. Ela, ai sou eu, pois não me lembrava, está bem, sou eu.  A enfermeira parada, a olhar-me fixamente.  Claro que saí ainda mais convicta, tenho de mudar de médica. É verdade que não costumamos  tomar chá as duas, mas sou sua doente há uns dez anos e é mais velha que eu. No comments.
Bom. Mas a minha experiência com médicas ainda não estava concluída. À tarde, depois de uma consulta que me reatou com a classe - era a segunda consulta e a senhora cometeu a altíssima proeza de me conhecer -, passei na Gulbenkian onde havia a apresentação de uma associação de voluntariado para maiores de 55 anos, coisa da minha faixa etária. Eram só crianças de cabelo branco, todas muito bem comportadas e tal.  Estavam assim umas figuras conhecidas, mas na Gulbenkian é normal, eles e elas não me conhecem e eu também pouco lhes ligo. Eis senão quando abrem a perguntas na assistência – chego quase sempre atrasada e só oiço as perguntas – e salta uma médica a dizer que não há direito – usou termos mais adequados ao lugar -, quem tem mais de setenta anos deseja trabalhar e vê-se a braços com a reforma. E deu exemplos: o professor Sobrinho Simões (o meu quase herói, está só um degrauzinho abaixo do Lech Valesa do antigamente), o professor Daniel Sampaio que tem aquele olhar esquisito que a gente sabe, o professor João Lobo Antunes, que até morreu quase a seguir e só faltou a garota deitar culpas à reforma. Estes três coitados – ela não se lembrou de outros -  foram compulsivamente empurrados para a reforma; e eu, Beatriz, fiquei com uma peninha deles desgraçada. Afirmou a ex.ma médica que estavam envolvidos em projectos e tiveram de abandonar e regressar a penates. Só porque cometeram o pecado de terem para aí uns setenta e tal anos (mas então o meu semi herói já é tão velho?! Mau Maria). Imagino que a esta hora andem a aspirar, limpar o pó, ir às compras. Não contente com este petardo, acrescentou a dama que aos setenta as pessoas são muito válidas e deviam continuar a trabalhar porque querem trabalhar, estão cheias de vontade de fazer coisas. E de trabalhar (voltou a frisar). E toda a gente a abanar a cabeça que sim.

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