segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

No Tempo da Escola

Hoje, com Portugal entregue à orgia turística como antes à padroeira, imagino que Peniche tenha sofrido mudanças apreciáveis  e divirja  da miséria que então assolava o país. A verdade é que acordei no autocarro para ruas de casario estremunhado e semelhantes às da minha aldeia; entrei numa taberna mais pobre que a do meu lugar e ao balcão estava uma mulher parecida às que conhecia; e agora percorria uma rua que desembocava numa parede maciça que segurava o mar de galgar sobre as casas e escangalhar ruas e praças, impedindo-lhe rotundas de água a toda a largura.
Junto ao paredão deambulavam vários homens encarapuçados e vestidos de escuro, e enquanto a mãe se preocupava a perguntar a prisão, abeirei-me temerosa da ventania marítima e da força da água que batia lá em baixo, recolhia a tomar balanço e estrugia parede acima numa fúria que me respingava o rosto. Verifiquei que se podia descer até ela por uma escadaria rente à parede e que agora tinha quase um lance de escadas submerso. Lá em baixo, decerto ancorado e, para mim, mistério incompreensível, um barquito pequeno aguardava sem se afastar, o mar a lambê-lo aos estremeções, para cá-para lá, para cá-para lá. Emudeci a observar a mole de água que é o mar, fascinada por não lhe ver fim. Envolta em cuidados e arrepios tenebrosos, ousei espreitar o fundo de água avaliando para mim que, se acaso caísse, ninguém seria capaz de me trazer à tona. Tinham-me contado que o mar era azul e assim o desenhava e pintava. Pensava-o transparente e, em caso de queda, todos saberiam onde buscar. Mas, lá em baixo, a água era escura, suja, e  a parede escorria limos verdes que oscilavam a cada bordoada aquosa. Pensei que cair ali seria o pior e dei um passo atrás sem desgrudar do barquinho que chapinhava indiferenças. 

Quando minha mãe regressou, um velho inquiriu, minha senhora, um passeio até às Berlengas? E minha mãe já a dar-me a mão, a desviar-me da beira, olhando-o sem entender, Onde? Não, não, nós não viemos a passeio. E ele a insistir comigo apontando o barquito, o barco está à espera, levo-as até lá à frente, não vêem o outro barco maior, lá no longe? Aquele barco não chega aqui, o mar aqui não tem fundura e tem rocha a mais, têm de ir comigo no batel, eu levo-as lá. Minha mãe tão preocupada que nem deu por mim a responder, qual barco, não vejo nada lá à frente. Ela a puxar-me, Obrigada, a gente veio para a visita na prisão. E ele, olhando-nos a abanar a cabeça, bem vi, mas não custa experimentar. E depois de si para si, ou talvez para haver a compaixão de uns trocos que bem se via que não tínhamos, dia de Natal e frio como está, quem é que aparece para as Berlengas...ninguém. Mas eu e a família temos de comer todos os dias. Minha mãe condoída e sem resposta, a desviar-se do assunto,  puxando-me, anda, é por ali. E eu fascinada com a serventia do barquito lá em baixo, a puxar-lhe a manga, mãe como é que as pessoas lá chegam, o barco não encosta...e apontava o hiato de água a alargar entre o barco e o cais. Minha mãe sem grande interesse, mourejando contra a nortada, as pessoas têm de pular para dentro do barco, filha. E eu transida, num apontamento mental, nunca hei-de ir às Berlengas, não sou capaz de saltar. Um homem que por ali andava, talvez um pescador em terra, que em dia de Natal não se sai para o mar, a adivinhar-me o pescoço torcido, ou talvez só por hábito de crianças curiosas, o barqueiro pegava-te ao colo e punha-te lá dentro. Mas o pior da viagem às Berlengas não é aqui, é depois, no outro barco: toda a gente vomita, tal é a qualidade das ondas e das correntes que há lá mais para a frente...e suspendeu-se a olhar-me das reticências. A esta altura devo ter posto a minha expressão de repugnância porque acrescentou, descansa que há baldes debaixo de todos os assentos. E nesse momento, do meio do frio de Dezembro, em Peniche marítimo e  à beirinha de matar a saudade paterna, prometi a mim mesma que Berlengas nem pensar. Contudo, no tempo em que eu e Lídia nos pertencíamos, quase me convenceu no seu afã de tudo experimentar, anda, vai ser engraçado, são ilhas desertas, a gente nunca esteve num lugar assim. Antes, tomamos comprimidos para o enjoo e depois ficamos a ver os outros a afundar em vómito. 
Lídia não conheceu o Natal da prisão, não avaliou a tristeza de ver o pai a um vidro e sem um toque de dedos, não experimentou a estranheza dele se aproximar  trazido por um guarda que se queda em escuta de tudo que dizemos; Lídia nunca teve o meu tamanho nem no útero da mãe, nasceu destemida e maior, o hiato entre o batel e o cais só lhe aumentaria o interesse por saltar. E eu estive lá, no interior do forte, naquela espécie de parlatório que só me permitia ver e ouvir meu pai, que nos impedia o abraço. Meu pai todo outro, magreza dentro da farda de recluso, o belo cabelo ondulado desaparecido e ossos do crânio a assomar, olhos encovados em determinação, mãos ossudas e em ângulo que não podíamos afagar... Senti que continuava naquele cais de impressionante perigo. Olhava-o e ao guarda por detrás dele e sabia que era ali que precisava saltar sem ajuda. Batalhar contra o medo.

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