quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

No Tempo da Escola

As crianças de tudo criam imagem. Assentei que a prisão era uma casa branca com grades nas janelas, vigiada por guardas iguais aos GNR que conhecia, as mesmas polainas pretas brilhando na lisura da farda cinzenta que a barriga empinava um bocadinho,  a largura impante do cinto a destacar a arma, colarinho duro ajustado ao pescoço e, no poiso do ombro, galões em cama de azul e verde. Rosto sisudo, a rematar o quadro. Contava que meu pai viesse para nós e eu correndo a dar-lhe o abraço apetecido depois de  ausência tão rara. Mas a realidade suplanta o sonho, a palavra, a escrita. Por ser de uso, esgota, rasga, envolve.  E todas as tentativas de dizê-la são cautelas da sorte só com  a terminação, um quase nada. É neste quase nada que se jogam a memória e a palavra. A realidade apresenta-se sem fuga, exige-te sem mediação. És tu e ela. Tu, assarapantado. Ela, na sua factualidade.
Quando minha mãe inverteu a marcha, pensei que voltávamos sobre os passos seguindo por rua diferente. Mas aproximámo-nos ainda mais do mar e fomos seguindo outra gente carregada de cestos e trouxas, o marulhar em fundo. Mulheres gordas, lenços na cabeça e saias a varrer o chão como a mãe de Lídia; outras mais novas e magras, crianças pela mão e ao colo; Uma ou outra rapariga a amarguçar o viço à vista do que as outras tinham perdido; algumas senhoras a destoar, casacos de boa fazenda e corte moderno, embrulhos cuidados em mão enluvada, ladeadas por homens de sobretudo e chapéu; crianças como eu, mais velhas e mais novas, os olhos da fome um íman redondo, adesivado à merenda esquecida na mão de alguns; homens curvados, tristezas velhas trepando pela  bóia do cajado, pés negros e descalços ou aperreados em sapato de missa. E em todos luzia a mesma pressa de saudade, o mesmo arrepio de cuidado e temor. Vozes que se erguiam sem direcção, Deus mo defenda das doenças que isto aqui é um coio e não há uma alma que avise a gente dos perigos em que estão. Meu São Bernardo o guarde, que lhe acendo uma velinha pela noite a ver se não me sai de cá amortalhado. E faziam um sinal da cruz deslaçado, a lembrar à trindade a dívida por conta da devoção ao santo. E outra, que ajoujava com a criança de colo e mais o carrego à cabeça, num lamento, só sabemos deles se morrem, isto é pior que o degredo. E cuspia no chão, canalha esta! E minha mãe a quem de súbito nascera uma inteligência nova, num sussurro, chegando-se a endireitar-lhe a cesta na cabeça, cuidado que podem ouvir, não vale a pena fazê-los penar mais, já basta o que basta. E eu cá em baixo, muda. A intuir alguma coisa de malévolo que não entendia. Sem compreender para ou por onde íamos, as perguntas a secar na garganta. Seguíamos  entre muros e o som do mar clareava a bater nas pedras. Tentei uma guinada e a mão de minha mãe aprestou-se a puxar-me para si, não espreites que  podes cair. E a do saco à cabeça, que nos tinha perfilhado, a agitar peremptórios diplomas de desgraça, quem cai aí, morre. No ano passado caiu um menino e ficou todo rebentado, coitadinho, os gritos da mãe eram um dó de alma. Pensei na água do paredão e agoniei a entrever a malévola indiferença  das ondas batendo a criança contra as pedras. Quando minha mãe estacou, ousei, parámos porquê. E o lacónico dela, chegámos. Mas os meus olhos apenas alcançavam as pessoas mais próximas. Curiosa, solicitei que me erguesse.  Suspensa pelas axilas, meteu-se-me pelos olhos um castelo de pedra escura que me parecia nascer do mar e uma enorme porta fechada. Balbuciei desanimada, é um castelo. Minha mãe corrigiu, é um forte, o muro de pedra é a muralha. Vamos passar por aquela porta. Lá dentro, está o pai,  acrescentou. E o meu coração contraiu.

Ao abrir da porta, outra surpresa: em fila vagarosa, os guardas passaram revista a cada visitante, as dádivas a anoitecerem sobre uma mesa para escrutínio antes da entrega.  Sujeitas à aspereza e mau modo dos guardas, as pessoas transmutavam, perdiam voz e vizinhança, estendiam a tibieza de mãos pedintes, a despojarem-se de ofertas em cuidados de cristal. Cada um a sós com o despotismo. Muita gente ansiosa e em monte, que as visitas eram contadas e curtas. À ordem dos guardas e divididos em grupos pequenos, os visitantes,  minguados no tamanho, seguiam recolhidos em visível temor, na certeza lumínica, não interessa, vou vê-lo.  Chegada a vez de mudamente nos internarmos, mirei as paredes sombrias, falhas de um claro de cal, sem largura de janela virada ao sol ou traço de calor em objecto mínimo. E, mal passámos a porta, o ressoar de pés no lajedo tornou-se tão distinto como o frio de neve que se infiltrava no corpo e arrefecia o rosto.

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