sábado, 7 de janeiro de 2017

Nevoeiro

Subi a persiana e a fita enrolou a cumprir o calvário dos dias, em esforço e má vontade. Mas acordá-la assim cedo é dar-lhe direito de irritação. Convenhamos,  não é apenas acordar, ela sabe que vai ficar suspensa o dia inteiro. E estar assim representa, numa persiana, esforço de bailarina em pontas. Bem sei, não é graciosa, mas dançar em pontas não quadra com persianas. Emendo, dançar não é para todos. Creio que a persiana ficou com os orifícios em bico ao abri-los para o dia. Que eu olho em frente abismada, a realidade a tardar-me.  O largo voga dentro da névoa.  Maravilha-me esta espessura do ar, gotas minúsculas sem intervalo ou malha caída. A prenderem na roupa. Pesam nas pestanas e sobrancelhas e agarram-se desvalidas aos cabelos que encontram. E por ali ficam. Fiadas de colar de uma menina gnomo. Edifícios e pessoas encerrados, fechados dentro da neblina, e a cidade goza esta barreira de ziliões de gotas e aproveita para afirmar o seu ser secreto, comedido. A nuvem densa formou-se durante a noite. Agora está feita um volume de formas arredondadas que se espreita de qualquer avião a perder altura. As gentes a extasiar, oh, nuvens tão bonitas e baixas. E apontam o pescoço de girafa curiosa nas torres que espreitam o sol, bom dia! De súbito, a nave mergulha na névoa e o vidro da janela parece baço. Flocos correndo de mão dada a uma velocidade louca; ou os viajantes a atravessá-los num turbilhão veloz. Agora também o avião se queixa, estou sozinho. Mas lá à frente, destaca-se a linha luminosa da pista, halo atrás de halo, irrealidade nebulosa que cola na terra. Há algo de fantasmático numa aterragem feita com nevoeiro. Atracção de temor. Também.
Mas eu estou apenas à janela de casa, na tentativa de encontrar as copas das árvores, imaginando a idiotice dos automóveis lá em baixo, isolados pela névoa. Próximos, mas ignorantes uns dos outros. Murmuram desconsolados, estava ao amparo de um vizinho mais gordo que me segurava as correntes de ar e agora estou para aqui sozinho e a tiritar de gotas. E arrepiam-se a sentir o friozinho que escorre em listas pela carroçaria e faz poça no chão, uma covinha de nada que apara as gotas que deslizam, meninas ordenadas em obediência que não se desvia do caminho. Todos sozinhos, os automóveis. Imagino os passageiros dentro do avião que ronca perto. Antevejo-lhes o receio, e se chocamos, se o piloto não vê o sinal e enfia no espaço de um avião que sai?!  Mas também há gente mal acordada, de costas para a névoa. E gente que apenas quer chegar ao aconchego do lar, de um lugar quente, seco, terrestre.
Saio maldizendo a falta de pontaria, gavetas cheias de gorros, chapéus, bonés e nem um no carro. Mergulho no nevoeiro agora menos denso, a paisagem por detrás da cortina de gotículas, em silhueta graciosa. Que é tudo bonito se mal se vê, à luz da  possibilidade, quando ainda pode ser outra coisa. Passam as horas, mas não a névoa.  Perto do rio, a humidade condensa e revigora. Não sei bem como, descubro sem procurar uma loja de roupa usada. Tudo a três euros (saldos, saldos). De casacos a cachecóis. Deve ter estado sempre no mesmo lugar, a menina simpática do balcão disse que tem anos ali, mas foi o nevoeiro que ma trouxe. Sou-lhe grata e faço-me cliente. Ser roupa de outra gente, é-me indiferente. Precisava um agrado, sentir que algum trapo me assenta e posso comprá-lo. Saio com um casaco de ganga fora de moda, mas tão queridinho, duas saias, uma pacata, rodada e escura; a outra de garota de desenho animado, tão rocambolesca que me admiro  de mim metida numa mescla de castanhos, amarelos e roxos vivaços, mas tenho um lado meio louco que não abafo de todo e nem pretendo. Olho-a melhor, é uma saia de tendeira de mau gosto. Duvido. E compro. Apesar de a preferir noutra cor, eu sei que vou vesti-la, presa de amores por um lacinho quase invisível a meio da perna e por quem desprezo as cores de holofote ambulante. Viva! Contente, ganho a rua  sobraçando o meu saco plástico de haveres. Tomara que chegue a primavera para luzir o meu casaquinho fora de tom que vai ser moda em mim. Eu. Je. A luzir-me nem que seja no tanque da roupa (no tanque não, que dá pouco jeito, é bem capaz de a ganga me prender os braços). E ainda ganhei um vale de três euros para a nova colecção, que é como quem diz, a nova leva de roupa usada que chega dia 16. Isto é que é sorte de mulher.

E à medida que as horas correm no relógio, a névoa, que mal pôs um pé fora de casa, regressa em força. Às dezoito afoba-se em bancos de nevoeiro atrasados para um encontro, agarrando-se uns aos outros para se puxarem melhor e sussurrando sugestões,  anda, olha ali aquele espaço, aninha-te que é lugar de recato. E os automóveis num vagar de sonho, viajantes em câmara lenta. Caminhos inteiros pejados de veículos sem ninguém que se veja, que por dentro do nevoeiro as pessoas apenas se adivinham. Cartesianos, podemos pensar, não há vivalma, hoje são as máquinas a guiar-se descansadas, livres de ordens ou irritadiço disfarce de pontapé calcando pedais. Na ponte, seguimos o halo das luzes dispostas no céu para nós, espécie de estrelas fixamente aristotélicas que desdenham da iluminação normal, cuja, nesta noite de atmosfera saturada, sumiu de todo. E eu queria uma ponte infinita. E eu nela. A ir. Só a ir. No possível e impossível.

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