A tarde murchava em
frio e vento e acendiam-se as primeiras luzes. Atordoei nos candeeiros eléctricos
bastante espaçados, devolvendo claridades diurnas a bocados de rua. Na aldeia,
ao cair da noite, uma escuridão terrível abatia-se sobre todas as coisas e encerrava o seu ser diurno. O breu trazia magia e mistério. Árvores que perdiam o ser e eram gigantes com
braços que podiam descer e agarrar-nos pelos cabelos; caminhos lisos convertidos em pequenos
precipícios para pés que os tenteassem; cães vadios e mansarrões que se
aproximavam de rabo entre as pernas sem um latido, devinham mastodontes
terríficos que nos podiam abocanhar uma perna, comer-nos um braço se
lhes apetecesse; qualquer homem pacato, um zé ninguém de pequena estatura, crescia desmesurado e lobisomem de dentes afiados e grande passada. Mas agora, zonas muito nítidas alternavam com outras onde
a sombra avançava em cinzento-pardo e de certeza ali passeavam ou se escondiam almas penadas. Mau grado os avisos das tias velhas, “agarram-te as pernas no
escuro, foge delas”, passeava-me às vezes pela casa, candeeiro de petróleo na
mão, a esclarecer-lhes o caminho. Condoía-me daquelas almas infelizes que se
tinham enganado no caminho do céu e erravam na terra sem lugar fixo. Tinha
certeza que entre nós não havia força maligna, mas a reciprocidade de bem
querer secreto e inamovível. Peniche era lugar delas.
Estava eu neste
solilóquio pensante quando reparei que a gorda ganhava terreno e inflava até
nós em bojudo balanço de nau catrineta. Olhou o
desalento de minha mãe e, ó mulher então que é isso, temos de ser valentes, não
podemos ficar atrás deles. O seu homem está vivo e de saúde, há-de sair daqui se
Deus queira. Mas aquela senhora ali – e apontava a de salto agulha encostada no
muro e amparada ao homem de sobretudo -, olhe, dela é que tenho pena, nem sabe
se o filho sai daqui vivo. Isso é que é desgosto. Não viu como ela
vinha, que nem se tinha nas pernas. O garoto, dizem que apanhou a pneumónica. O
que os filhos fazem à gente. Não queria estar na pele da desgraçada. Parece que
o rapaz andava lá pelos estudos a falar contra os mandantes disto tudo, que
isto é gente rica. Enfiaram-no aqui e um corpinho estimado não se aguenta aos
desmandos da prisão. Que aquilo, digo-lho eu que bem o ouvia, é
tosse que não cura. Olhe, o meu é duro para aprender, nem à segunda chegou e
nem a gente podia mais que fazia falta ao trabalho. E foi igual, engavetaram-no
por ter língua comprida. Que é comunista, dizem. É verdade que está habituado à
miséria, mas sabe Deus o que padece. Agora imagine lá o outro, criado em mil
cuidados - quedou-se um pouco a olhar-nos e adiantou -. Vou-me à vida que
vim dos longes, até mais ver que a gente ainda aqui torna; antes não tornasse.
E seguiu caminho sem esperar palavra, cabeça erguida, a gordura em ondas sob as
saias compridas batidas de vento. E eu cá em baixo a ver afastar-se aquele muro
protector, roída de compaixão por um desconhecido, a imaginá-lo lindo e doente,
entrevendo motivo nos passos desalinhados da mãe. Entretanto, a minha companheira apertou-me a mão e a voz saiu-lhe na leveza pesadíssima de sem sacos, temos
de ir ver da carreira. E eu senti nela o alento solfejado da gorda, a lição de uma má
sorte que não era ainda a pior sorte.
Inexorável, o dia descaía
para a noite e o chamamento aflito das gaivotas retardatárias augurava no ar frio. Já com alguma distância, voltámo-nos para um último olhar ao forte, eu, tentando imaginar em que direcção se encontraria meu pai. Mas entre nós duas e a mole escura interpunha-se outro quadro, a senhora subia descomandada para o automóvel, pés e pernas estranhos
de si, interrogando fundos de tapete, embraiagem, travão,
acelerador, quem somos, para que servimos. E o senhor a ajeitá-los brandamente,
um depois do outro, a encostar ao tronco um braço desnorteado fechando a porta de seguida. Depois contornou o veículo e entrou. E breve perdemos de
vista o desgosto encapsulado dos dois.
Meu pai fechado num lugar tão diverso do que imaginara. Tão afastado da
defesa mental que eu construíra. E o meu único pensamento era regressar. Chegar
a casa. Rodear-me de mundo conhecido.
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