Os
refugiados afligem-me. Não apenas os que chegam diários e observamos na TV à hora do jantar ou a outra, postos em espera
carneirenta, enfileirados e intermináveis, aturdidos de kispos e gorros, mochila
às costas. Vivemos na era dos media, há canais só de notícias e resumos a
qualquer hora, podemos, se o desejem os canais e também nós, percorrer-lhes a atribulação dos passos.
Podemos, num sado-masoquismo sem nome, ficar à lareira a vê-los caminhar
debaixo de neve. Ou apenas observar do nosso canto limpo e seco, a enxovia que
vai por aquelas tendas de toda a gente ao molho e fé em Deus, que Alá não é
menos grande que o Outro. Podemos deglutir calmamente a nossa sopa, segundo e
sobremesa enquanto olhamos a fila de párias no ensejo de um prato quente. Podemos
até, por entre a mastigação, emitir pareceres, que mundo este, ao que nós
chegámos, olhem bem para esta miséria, nem casa, nem bens, andam ao Deus dará
pela Europa. E mais coisas deste teor que nos deixam brevemente pensativos face
à injustiça do mundo a que pertencemos. Mas é ele, mundo, que é injusto, não
nós que até temos piedade deles todos e somos capazes de doar a nossa roupa sem
uso e a que juntamos víveres para que, ao menos, caminhem quentes por essa
frieza europeia e sejam alimentados. E até desejamos que encontrem uma casa e
um povoado que os acolha, mas não perto de nós que não sabemos quem é esta
gente e depois podem surgir complicações. E estamos nisto. De bem connosco.
Estou
palrando, mas, como afirmei acima, a minha aflição maior é ainda outra. E anterior.
A raiz da minha angústia vem de barco, atravessa o mar num estreito demasiado
largo para tanta gente, cada metro a medir uma enormidade, “ficam léguas a nos
separar...Tanto mar, tanto mar”. Chico Buarque estava bem longe desta verdade atroz, quando
escreveu a canção que era de boas vindas
e parabéns ao 25 de Abril, e me salta à mente mal surge a notícia de mais uma
tragédia marítima e não sei quantas vítimas. Penso nesses homens e mulheres africanos
desde que vendem tudo e amealham de mil maneiras a soma que os intermediários
exigem, por cabeça, no transporte. Avalio a esperança a guiá-los para uma vida
sem guerra onde os filhos possam crescer, embalados no sonho comum de uma casa,
um emprego, sono descansado...imagino-os à partida no barquito, apertando-se
uns contra os outros. Para quem os embarca, cabe sempre mais um. E eles a
fazerem espaço no temor de, ai se isto vira, se vem uma onda e nos leva num
repente, se afundamos de tanto peso. Mas com pena de quem não cabe, conheço-o,
é boa pessoa, pagou como eu. E espremem-se uns de encontro aos outros iludindo
a saudade de quem fica de mistura ao medo da travessia. Quem manda a garantir,
não posso largar sem ter cá dentro o número de pessoas certo. E logo a
sossegá-los, é perto, daqui a pouco estão lá, isto vai equilibrado de peso, não
afunda, já fiz viagens com o dobro de gente.
Largam.
E, em noites claras, os mesmos olhos que antes se despediam da única terra
conhecida, buscam descortinar o vulto ainda escuro e nebuloso da Europa que
encaram como terra prometida. E muitos
não chegam a vê-la. Outros apenas a apercebem. Outros são salvos pela polícia
marítima espanhola, italiana, grega,
cipriota... Assistem-nos e juntam-nos em lugares próprios. E recambiam-nos. São
devolvidos à procedência. Depois de tanta privação aflita e de alguma sorte que
os acompanhou, entram na Europa com guia de marcha para o seu país em guerra, onde a maioria já não tem casa nem família. E quantos milhares estão sepultados
no vasto mar. Vi-os em Itália, uma maioria masculina de olhos sem fundo, apartados
em grupos e que os italianos estão proibidos de ajudar. Não pedem, não
perseguem; e ninguém lhes dá trabalho. Há-de haver um barco que os remeta à
pátria. Que eles já nada esperam.
Compreendo
os problemas de quem os recebe. Entendo as queixas dos países que se envolvem
nos salvamentos e guarda de salvados. Mas não serão os governos europeus capazes
de se juntar para dar fim a tal martírio?!
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