domingo, 12 de março de 2017

Refugiados

Os refugiados afligem-me. Não apenas os que chegam diários e observamos na TV  à hora do jantar ou a outra, postos em espera carneirenta, enfileirados e intermináveis, aturdidos de kispos e gorros, mochila às costas. Vivemos na era dos media, há canais só de notícias e resumos a qualquer hora, podemos, se o desejem os canais e também  nós, percorrer-lhes a atribulação dos passos. Podemos, num sado-masoquismo sem nome, ficar à lareira a vê-los caminhar debaixo de neve. Ou apenas observar do nosso canto limpo e seco, a enxovia que vai por aquelas tendas de toda a gente ao molho e fé em Deus, que Alá não é menos grande que o Outro. Podemos deglutir calmamente a nossa sopa, segundo e sobremesa enquanto olhamos a fila de párias no ensejo de um prato quente. Podemos até, por entre a mastigação, emitir pareceres, que mundo este, ao que nós chegámos, olhem bem para esta miséria, nem casa, nem bens, andam ao Deus dará pela Europa. E mais coisas deste teor que nos deixam brevemente pensativos face à injustiça do mundo a que pertencemos. Mas é ele, mundo, que é injusto, não nós que até temos piedade deles todos e somos capazes de doar a nossa roupa sem uso e a que juntamos víveres para que, ao menos, caminhem quentes por essa frieza europeia e sejam alimentados. E até desejamos que encontrem uma casa e um povoado que os acolha, mas não perto de nós que não sabemos quem é esta gente e depois podem surgir complicações. E estamos nisto. De bem connosco.
Estou palrando, mas, como afirmei acima, a minha aflição maior é ainda outra. E anterior. A raiz da minha angústia vem de barco, atravessa o mar num estreito demasiado largo para tanta gente, cada metro a medir uma enormidade, “ficam léguas a nos separar...Tanto mar, tanto mar”. Chico Buarque  estava bem longe desta verdade atroz, quando escreveu a canção que era  de boas vindas e parabéns ao 25 de Abril, e me salta à mente mal surge a notícia de mais uma tragédia marítima e não sei quantas vítimas. Penso nesses homens e mulheres africanos desde que vendem tudo e amealham de mil maneiras a soma que os intermediários exigem, por cabeça, no transporte. Avalio a esperança a guiá-los para uma vida sem guerra onde os filhos possam crescer, embalados no sonho comum de uma casa, um emprego, sono descansado...imagino-os à partida no barquito, apertando-se uns contra os outros. Para quem os embarca, cabe sempre mais um. E eles a fazerem espaço no temor de, ai se isto vira, se vem uma onda e nos leva num repente, se afundamos de tanto peso. Mas com pena de quem não cabe, conheço-o, é boa pessoa, pagou como eu. E espremem-se uns de encontro aos outros iludindo a saudade de quem fica de mistura ao medo da travessia. Quem manda a garantir, não posso largar sem ter cá dentro o número de pessoas certo. E logo a sossegá-los, é perto, daqui a pouco estão lá, isto vai equilibrado de peso, não afunda, já fiz viagens com o dobro de gente.
Largam. E, em noites claras, os mesmos olhos que antes se despediam da única terra conhecida, buscam descortinar o vulto ainda escuro e nebuloso da Europa que encaram como  terra prometida. E muitos não chegam a vê-la. Outros apenas a apercebem. Outros são salvos pela polícia marítima espanhola,  italiana, grega, cipriota... Assistem-nos e juntam-nos em lugares próprios. E recambiam-nos. São devolvidos à procedência. Depois de tanta privação aflita e de alguma sorte que os acompanhou, entram na Europa com guia de marcha para o seu país em guerra, onde a maioria já não tem casa nem família. E quantos milhares estão sepultados no vasto mar. Vi-os em Itália, uma maioria masculina de olhos sem fundo, apartados em grupos e que os italianos estão proibidos de ajudar. Não pedem, não perseguem; e ninguém lhes dá trabalho. Há-de haver um barco que os remeta à pátria. Que eles já nada esperam.

Compreendo os problemas de quem os recebe. Entendo as queixas dos países que se envolvem nos salvamentos e guarda de salvados. Mas não serão os governos europeus capazes de se juntar para dar fim a tal martírio?!

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