terça-feira, 14 de março de 2017

No Tempo da Escola

No temor de não encontrarmos o largo da paragem, regressámos pelas mesmas ruas, somando sinais e pormenores. Lá estava a taberna com a rede na porta e de janelico fechado, o toldo num badanal; a caixa de correio agora escura e sorumbática, sem a cor ridente de antes; as casas de galochas calçadas, a barra um escuro de bota.  Apercebíamos a vida familiar por detrás de portas riscadas por fendas luminosas e buracos de prego de onde escorregavam gritos, risos, descosidos de conversa que ficavam a esvanecer no passeio; o receio desviava-nos de um  ou outro bêbado que não nos lobrigava,  perna bamba e aos esses, enfronhado num conciliábulo de si consigo, porfiando em dobrar uma conversa de hieróglifos. Sem defesas, arrepiávamos na roupa minguada, Dezembro a fazer-se presente poro a poro, os cães vadios por certo abrigados do frio em algum lugar. Eu tremia entaramelada, doíam-me as pernas e os pés, esguedelhava sem memória de caracóis e penteados, sentia fome. E só criei ânimo quando, já na paragem, o autocarro se apresentou. Iluminado. Assentos vazios e descansados. Um abrigo aquecido a convidar-me. Entrei aos tropeções engadanhados, sentei-me, encostei ao vidro e apaguei. Acordei com a cabeça no regaço de minha mãe, um barulhinho de chuva a bater no tejadilho e o motor, rom-rom-rom...e adormeci de novo.  Revivi a um estertor mais profundo do motor  e atentei nela. Absorta, mergulhava em tristeza profunda, olhos vermelhos e inchados. Tinha na mão o lencinho de aparar as lágrimas mal elas a meio caminho do nariz.  Sem bulir, fechei os olhos de novo. Preocupada e atónita, deixei-a extravasar o desgosto, não tanto  por lhe encontrar direito como por não saber o que fazer.  E quando mais tarde me acordou com palmadinhas no rosto, tinha o sorriso de sempre. Num fundo de meio remorso, eu, que entretanto não dormira, alegrei-me, aquela era a mãe que eu conhecia.
Na volta, o caminho até ao barco pareceu-me extensíssimo, mas embasbaquei de novo nos candeeiros da rua. Muito mais bonitos que os de Peniche, derramavam uma quantidade de luz tão superior que impressionei, a rua via-se por inteiro. A poder de tanto luzir,  a cidade nocturna era uma festa. E havia o incomensurável das estátuas que dominavam descomunais, ao centro da lisura de praças maiores que o enorme bocado da aldeia que eu conhecia. Como tudo era grande em Lisboa! As estátuas, supremas e terríveis, à coca; tão altas que continuava a não conseguir vê-las por inteiro.
Entretanto, uma chuvinha miúda acabava o trabalho do frio. E eu desejava chegar à minha aldeia sem luz, entrar no conforto desconfortável de minha casa e dormir o sono que uma madrugada de rolos e excitação me tinha roubado. Precisava repousar as novidades do dia. Apesar de tanto desaire e cansaço, cá em baixo, no lugar que eu desconhecia ser o Terreiro do Paço, maravilhou-me o espelho negro do rio tremeluzindo aqui e ali, cruzado de tempos a tempos por barcos iluminados farreando sobre as águas. E que bonitas as luzes dos longes no outro lado, onde eu antevia um comboio a esperar-me. Indiferente a ser noite ou dia, Lisboa era cheia de gente sem descanso, para cá-para lá, para cá-para lá. Muito casaco ambulante, guarda-chuvas que à luz ganhavam beleza e desenhos nunca vistos, senhoras que traziam animais ao pescoço. Minha mãe para a minha instintiva agastura a fixar uns olhos de raposa sem fazer ideia que bicho fosse, é só a pele do animal, não precisas ter medo, os olhos são postiços; e eu a eriçar de má vontade à mulher, apiedada do bicho que àquela hora penava mais que eu, assim nuzinho; e passava gente refastelada em táxis lampeiros e sabedores de caminho, mas que não eram o do senhor Laurentino. Junto ao barco, o rangido da ponte levadiça, as águas que alargavam e encolhiam à medida dos balanços e que era necessário pular, a minha mão aferrada na mão de minha mãe, agoniada daquele pedaço de chão móvel. E o fascínio trémulo das pernas, "não somos capazes". E,  por fim, ela a içar-me em peso.
No comboio tardio e pouco concorrido, minha mãe deitou-me no banco, puxou-me o vestido para baixo e adormeci, cabeça no seu colo, largada no descanso  do braço que me rodeava.

Fizemos o caminho até casa na maior escuridão e silêncio. Além dos nossos passos, só um cão ou outro a pressentir-nos em rosnadelas baixas como se com medo de acordar alguém, que os cães têm destas delicadezas inesperadas. Ao abrir da porta, minha mãe, espera que acendo o candeeiro e vou pô-lo no quarto. Entrou de candeeiro na mão e postou-se a olhar-me. Comecei a tirar o casaco de lã e foi ao virar-me que o vi. Sobre a minha almofada, armado e folhoso, estava um bibe branco rodado. Num friso  da saia, a toda a volta, tinha bordada a história da carochinha. E era tal qual o que eu vira na revista de minha prima que bordava para fora. Ficámos a olhar-nos sem palavras. Depois, minha mãe murmurou, o dia foi muito comprido, mas é Natal, filha, é o teu menino jesus. E eu, grata e contente até à medula, saltei a abraçá-la pela cintura, gosto tanto de si, mãe. Então ela pousou o candeeiro, levantou o bibe, pendurou-o sobre a cadeira e veio, como de hábito, ajudar-me a deitar. E quando me beijou e ajeitou a dobra do lençol, os meus olhos fecharam de peso  e bem estar.

2 comentários:

  1. Lisboa e as suas luzes, só conheci já adulta. Mas antes disso, também conheci a luz frouxa do candeeiro a petróleo.

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  2. Olá:)
    Era a luz amarela, o cheiro, a tarefa de limparmos diariamente a chaminé de vidro sem a quebrar que não havia outra, depois aparar a torcida do bocal com a tesoura (retirar a parte queimada) e deixá-la direitinha ou a luz espichava de um lado, mascarrava a chaminé e ficava o mundo ainda mais escuro. Sou uma entendida em candeeiros a petróleo, petromax e velas de cera. Tudo coisas sem serventia:)
    Grata pela visita.

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