sábado, 6 de maio de 2017

Mãe não tem Limite, é Tempo Sem Hora

O Dia da Mãe já foi a 8 de Dezembro,  no tempo em que as mães o partilhavam com a Imaculada  Conceição.  Na minha aldeia, como provavelmente no resto do país interior, o Dia da Mãe era pura irradiação da mente da professora primária e estava fora do impulso consumista que hoje nos derrota. Portanto, semi-existia destinado a mães com filhos em idade escolar. E nem sei se semi-existia.  É que, nem elas, as festejadas, davam importância a haver um Dia da Mãe que era cópia dos outros dias, apenas acrescentado da oferta escolar.
Minha mãe guardou um pedaço de cartolina em claro azul, com uma desajeitada imagem de Maria e um Jesus-bebé, rabisco de lápis escurecido de muita borracha sem pedigree, sobre vincos de força na mina de carvão.  Em sinal de santidade, usam  auréolas sem escala, mais parecendo dois astronautas, um ao colo do outro, que seres divinos. Em volta, semeei duas ou três estrelas inexactas e sem fulgor, o amarelo do lápis acinzentando nos restos de carvão.  Por baixo, escrevi frases  pontuadas de palavras como prece, auxílio, gratidão e que devo ter copiado do quadro. Os cartões apenas divergiam na ilustração, cada artista a espremer o seu talento. Ou a falta dele (o meu caso).
O mundo masculino - o dos pais, quero dizer - “nem se torcia, nem se amolgava”. Tanto se lhe dava. É que o dia era “coisa de mulheres” e estava confinado à escola primária, termo que, como toda a gente sabe, significa primeira e que hoje nem se aplica, que a primeira escola é agora – e muito bem - o jardim de infância.
Na generalidade, as nossas mães não apaixonavam pela lembrança recebida. Depois de vista e lida, abandonavam-na sobre a mesa da cozinha ou noutro lugar onde breve enodoava, franzia, rasgava, evadia. As mais atentas e agarradas a recordações punham o cartãozito sobre a chaminé e ali ficava a entontecer aos vapores de fumo e cozinhados, acabando por finar-se na época da caiança geral, quando, amarelecido e dessorado, era deitado  ao lixo sem pena ou paixão. Minha mãe guardou-os não sei onde, que sobre a chaminé não ficaram. Talvez dentro do saco que lhe servia de mala, lugar onde encontrei, entre outras recordações, o meu desenho estapafúrdio.
Entretanto, a igreja festejava o dia da Padroeira. Mas, para nós, era apenas Dia da Mãe. Da nossa Mãe, aquela maravilha de pessoa que estava por detrás de tudo e que, perfeição máxima, nos amava. As mães eram o nosso mundo completo. Podia faltar qualquer coisa em casa, ou mesmo várias em simultâneo que elas eram necessidade pura, ar que se respira. Nada nos  existia sem a mãe.  
A padroeira pertencia a outras contas. Lá no céu, o Menino Jesus, garoto para aí da nossa idade, estaria também a oferecer o seu desenho-menino à mãe dEle. Portanto, não nos preocupávamos a pensar nEla. Tendo um Deus por filho e por morada o Céu, só podia estar bem servida. Mas as nossas mães, tão carregadas de trabalho e sacrifício, elas sim, importavam-nos. Elas sabiam o que significava prece, auxílio, gratidão, palavras finas  que tínhamos copiado de mão tremente e sem erros, mas não fazíamos ideia do que queriam dizer. Contudo, havia mães analfabetas; e outras que, sabendo ler, desconheciam tais palavras por não serem de uso. Mas nada disso nos acudia à mente e aplicávamo-nos todos com o mesmo enfâse.  Fazer um cartão para dar à mãe era um céu aberto de orgulho tamanho. Concentrados e de língua de fora, aprestávamos engenho e arte para fazer bonito. À saída da escola, aconchegávamos o cartão nos interiores do livro de leitura e a pernoita garantia-lhe aprumo militar na manhã seguinte. Porém, a proximidade do lar tornava a novidade irresistível e havia gente incapaz de suster o segredo. Na alegria impaciente da surpresa, mal a figura da mãe despontava, o desejo crescia irreprimível. Espontâneas, algumas mãos afundavam nos interstícios da mala,  pescavam o cartão e a oferta surgia embrulhada num sorriso de orelha a orelha.
            Não sei como procediam as outras mães. A minha quedava-se séria, concentrada na leitura. E eu nos baixios, cabeça entre a cinta e o peito dela, olhos a investigar sintomas nas linhas do rosto, temendo irresolutos de letra torta, ou desgoverno de erros. Mas, no momento em que se baixava para um beijo, obrigada, filha, está muito bonito, entrava-me um orgulho descansado, talvez um suspiro de alma contente.
Entretanto, os anos passaram e as Mães ganharam alento para um dia todo seu no calendário.  Que o primeiro domingo de Maio é Dia do Amor dos Filhos a esbarrondar.

            Vês, Mãe, o tempo não muda nada.  É ainda o mesmo amor. Forte e humilde. Imortal. Dá cá a mão, hoje sou eu a tomar conta.

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