segunda-feira, 22 de maio de 2017

No Tempo da Escola

Pouco me ocupava a pensar na morte. Sabia que existia, mas era ideia nebulosa, coisa que acontece aos outros que não são muito próximos, de preferência já velhinhos. Ora o meu círculo chegado era constituído por seres cheios de vitalidade que não imaginava poderem faltar-me. Conhecia histórias e canções em que a morte aparecia como solução desejada, facto que a fazia menos morte, quase amigável; morriam as fadas más, as madrastas pérfidas, gente imprestável ainda que bonita e jovem.   Contudo, eu tinha certeza: fora desse mundo inventado, a morte era má, retirava-nos as pessoas sem pedir licença e, uma vez mortas, desapareciam por detrás dos muros do cemitério que alvejavam da carreira; nunca mais as víamos. Siderava de curiosidade sobre o cemitério, casa de mortos. Mas a mãe agudizava o mistério a determinar omnipotente, não é lugar para uma criança, tens tempo quando cresceres. Ao passar na carreira, olhava-o mudamente, intrigada com o conteúdo por detrás daquela vastidão de cal, e admirava  o orgulho de soldado eterno plasmado no portão verde de lanças ao alto, um cadeado a encerrá-lo durante a noite. Entretanto, minha mãe persignava-se, olhos húmidos e lábios ciciantes, em jeito de terra que pede a Deus uma gota de água. Para mim, era como se os mortos todos ali de mãos nas lanças, em súplica, rezem por nós. Mal a oração terminava, eles, provavelmente aliviados, desvaneciam. Então, inundava-a de perguntas, para que os fechavam se já não podiam mexer-se, o que havia nos cemitérios, por que era o muro tão alto, como é que ali os levavam, se havia uma cama para cada um. Minha mãe tinha alguma dificuldade em entrar no mundo da infância e respondia-me coisas incompreensíveis, como se falasse um idioma desconhecido. Não desanuviava  a minha inquietação e acabávamos a mudar de assunto.
No caso de madrinha Carmelita, minha mãe perseverou no propósito e afastou-me do cenário de morte. Não fui ao cemitério como desejava a minha curiosidade, e nem sequer vi madrinha Carmelita defunta, quero que te lembres dela como a conheceste, filha. Chorei de frustração. Queria estar presente na cerimónia, no interior do cemitério, em tudo que desconhecia.   Mas fiquei em casa.

Se a vida da madrinha velha ainda hoje me é grata, foi na sua morte que aprendi novo cambiante da saudade. Não a saudade cristalina que me chegara na ausência de minha mãe quando passei férias em sua casa e que agora repetia com meu pai. Era uma saudade diversa, pungente, toda irrefutável. A princípio não a notei, veio pé ante pé, no regresso ao quotidiano. Levava-me a olhar a carreira e correr até à paragem nos dias certos em que chegava trôpega e risonha. Bastas vezes a carreira nem parava, alheia à esperança mágica do meu coração. Porém, se acontecia, eu fazia o de sempre, rodava o manípulo da porta da frente preparada para lhe aparar o saco, a antevê-la em descida temerosa, repetindo o ritual, um pé depois do outro, a bengala e o revisor a amparar sob a vigilância do chofer, enquanto o motor resfolegava ansiedades, ai se cai. Mas nunca ela obedeceu à força do meu desejo e se presentificou. Não apareceu a sorrir-me de olhos ampliados por detrás dos óculos. Não me envolveu mais no seu abraço de tomar conta de mim com o corpo todo. A falta de madrinha Carmelita fez nascer a saudade cristalizada a que o tempo tira peso sem roubar fundura. 

Sem comentários:

Enviar um comentário