sábado, 27 de maio de 2017

No Tempo da Escola

Por vezes, o mundo parece testar-nos a paciência. Não nos oferece primazia, que essa pertence-lhe, mas é como se ela exista em função do que decidimos. Entediados da peregrinação diária e  saturados de não encontrar mudança na Casa do Cabeço, esmoreceu-nos o ânimo, amanhã já não vimos por aqui. Mas eis que, chegados a esta tardia decisão, deparámos com janelas abertas e, na rua que continuava o portão, sombreada por chapéu de palhinha fina e de regador pendurado na mão, uma figura miúda, encavalitada em altura de saltos. Começou a aproximar-se tic, tic, tic, e nós junto às grades, olhos em alvo.  Quando chegou perto, observei as gotas de suor que lhe  nasciam sob os olhos, o rubor de quem não tem hábito a soalheiras e torrinas, alguns fios de cabelo colados na testa. Estes pormenores e a forma desajeitada de andar, afastaram-nos a suspeita de alma penada ou fantasma.  Na nossa frente  estava uma mulher de carne e osso. Depois de nos mirar, deu um olá sorridente, abriu o portão e convidou-nos a entrar. Respondemos em coro um cumprimento arrastado e átono que engoliu a primeira sílaba e soou meio lúgubre, “taaaard”, e atravessámos o portão em vagares e lentidão de pernas, às voltas com resquícios de medo que nos tolhiam e dobravam pela cintura a veneta curiosa. Teremos sido os primeiros a pisar o chão de “As Três Marias”, nome a que ninguém fazia  caso, o edifício foi sempre a Casa do Cabeço.
Ladeámos a casa com ela a comandar a tropa e, depois de poisar chapéu e regador, deixou-nos sob a frescura de uma árvore farfalhuda e entrou pelas traseiras dizendo, está ainda muito calor,  vou fazer um refresco para todos. Empolgámos. Em nossa casas, refresco era uma mistura de vinagre, açúcar e água e só em dias especiais, as mães quase a suplicar, tu vê lá o que é que fazes, não me gastes o açúcar ou bebemos café amargo toda a semana. Mas ali, sobre a mesa,  um jarro grande e transparente, cheio de líquido vermelho com pedrinhas de gelo a boiar contentamentos. Arregalámos os olhos e as bocas distenderam cheias de dentes, enquanto ela trazia copos numa bandeja. E até à noitinha foi a conversa de quem era quem, em que ano estava cada um, onde se faziam compras, quem vendia o quê. Queria saber tudo. E porque ninguém se importava demais connosco, lançámo-nos a fazer pára-quedas de tal importância e, em algazarra,  colaborámos quanto pudemos.  Depois, a senhora olhou um minúsculo relógio de pulso, reconheceu que se fazia tarde e trouxe-nos até ao portão.  Deu um adeus apressado, correu fechos e sumiu no caminho.  E nós a rebentar de vaidade, tínhamos sido  os primeiros a entrar na Casa do Cabeço.  Quando virámos costas e nos pusemos a caminho, palrámos animados da sorte, orgulhosos por participarmos nas descobertas sobre a casa que movia toda a aldeia. Além disso, surpresa boa, tínhamos provado refresco de morango.  E só em casa, quando contava a minha mãe, reparei, nada sabíamos daquela mulher. E não houvera um convite para voltarmos. Quem era, como se chamava, que família tinha, ignorávamos.
Na tarde seguinte, antes do giro habitual, discutimos o assunto entre todos e acordámos que já era velha. Contudo, a discordância sobre a idade foi tão notável que suspendemos a ideia. Se para uns ombreava com os irmãos, para outros rondava os avós. Apurámos que seria casada ou viúva, um garoto a afiançar com juras de morra aqui ceguinho que usava  duas alianças.
Entretanto, fizemos algumas tentativas infrutíferas na casa.  Atardávamo-nos ao portão a espreitar às grades e dávamos palmadas na chapa na ânsia de mais descobrirmos, de outro refresco, de um átomo de novidade. Mas tudo permanecia na mudez de antes, sem bulir. Depois, parávamos o chinfrim e recolhíamos em silêncio prolongado, a esforçar-nos por aperceber barulhos de gente, quem sabe a senhora não nos queria ver, mas estava em casa. Enquanto estávamos suspensos, captávamos um leve de brisa que brincava na copa das árvores e uma folha ou outra, como se envolta em algodão, a pousar na terra. Sobrava ainda  o resmalhar inquieto da passarada que nos detectava  em trinado curto, a avisar, tem gente, e que alteava a  mudar de ramo. E a madeira das árvores estalava descomposta  de calor, elas numa timidez graciosa, desculpem. Logo atrás de nós, a pressa pisada dos pastos dizia de um coelho desavisado, vítima do nosso silêncio e que fugia com quantas pernas tinha. E mais nada.
E a vida continuou o seu jogo de acaso e calor. Com o passar dos dias, o nosso encontro com a Casa e a sua moradora arrefeceu  e deveio memória, coisa que nas crianças, sempre cheias de presente, tem curta lembrança. Certa manhã, estranhei acordar com batidas na porta. Em minha casa, se a porta fechada,  toda a gente sabia, empurrava-se o postigo, deitava-se a mão por dentro e corria-se o fecho. Ensonada e um tanto curiosa, saltei da cama e fui abrir. Pelas frestas dos olhos, recortado na claridade, um vulto de mulher, a tua mãe está? Recuei para a penumbra a refazer a marcha dos olhos num esforço de focagem e fiquei boquiaberta: na minha frente, muito composta,  a senhora da Casa do Cabeço a reafirmar, preciso falar com a tua mãe, diz-lhe que vá, logo à tarde, a minha casa. E virou costas a escolher caminho na ladeira, um automóvel paciente na beira de estrada.



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