quarta-feira, 3 de maio de 2017

No Tempo da Escola

A professora despontou em mancha numa esquina de prédios e abrimos um écran de susto.  Ora à sombra, ora ao sol, a figura dela crescia e pormenorizava. E nós patos mudos, apertados uns contra os outros. Quando chegou perto e estava completa, das unhas ao cabelo, do cinto passado no cós da saia aos sapatos com sola de corda, fixou-nos séria e nem precisou perguntar que logo alguém, minha senhora, foram eles que andaram à briga por cima da mesa. E o duo fixando o empedrado, a vergonha a enxameá-los  até às orelhas. A mestra determinante, agora pedem desculpa. E levou os dois por uma orelha. E nós ao vidro da montra, mão em pála,  apreciando o regresso de boa disposição no empregado, pendentes do movimento de lábios dos colegas, a decifrar-lhes as palavras num abanar de cabeça convicto, estão a pedir desculpa; e depois o alívio e eles quase correndo até nós, a professora atardada ao balcão, junto do laço preto.
Só mais tarde, já sentados no carro azul, ela nos situou, é a última vez que vou pô-los na porta da escola. Parabéns a todos, a escola primária ficou para trás. Olhámos uns para os outros mal podendo crer que não voltávamos a juntar-nos à roda de livros, problemas, tabuadas. Mirei a garota sentada a meu lado. Era loira, tinha doces olhos azuis e não morava na aldeia, mas  partilhara connosco quatro anos. Apertou-me a mão e disse baixinho, pode ser que a minha mãe venha aviar-se nesta loja e depois brincamos as duas. Separámo-nos como sempre que começavam as férias, até qualquer dia. Eu e Luís fomos os últimos a abandonar o edifício e deixámo-nos ficar a olhar a loirinha a minguar na vereda até ser engolida pela altura dos pinheiros.  No caminho para casa, Luís de jacto, nunca mais carrego a tua mala quando estiver pesada. E eu, somos vizinhos, eu vejo-te sempre. Ele seguindo um pássaro no ar da tardinha, eu também te vejo sempre. E de seguida, queres correr até ao meu monte a ver quem chega primeiro? E lançámo-nos ao desafio. Ainda eu a meio e já ele virava na ladeira do portão, o rosto para trás, perdeste outra vez. E nem precisava olhar de perto, sabia que ofegava a sorrir, a mala a bater-lhe mansamente nas pernas.
Depois, dei uma carreira até casa na satisfação da novidade, “passei”, e minha mãe alegre a abraçar-me, o seu cheiro doce e morno a repassar. Mas ao meu grito, “mãe, passei”, ela abriu um sorriso breve e tão estranho que me saltou, o que é que foi, mãe. E ela, é o pai.  Avisaram-me que foi outra vez parar ao segredo e tão depressa não tem visitas.E deu-me as costas. Insisti, o segredo é o quê, mãe. Ela, ó filha é um lugar de sofrimento para os fazer dizer nomes de pessoas que não estão presas e lutam como eles pela liberdade. Parece que houve alguém que queria fugir e estão desconfiados que houve ajudas fora e dentro. Ai valha-me Deus. Pelo Natal já ele estava pele e osso e dizem que os deixam a pão e água. Virgem Santíssima mo guarde que eu não sou capaz. E, em jeito de quem reza, sentou o desgosto e permaneceu quieta de não bulir,  cotovelos na mesa, indicadores sobre os olhos fechados.  
No caminho, ensejara o orgulho e satisfação de minha mãe. E em vez disso, Peniche e meu pai fechado no segredo. E a tristeza dela a cortar na minha ventura.  Nessa hora, pensei que a notícia podia ter chegado um dia depois, que meu pai escusava de lutar pela liberdade, podia ser um homem igual aos outros, a embebedar-se na taberna aos domingos e dias santos.   Cheia de pena de mim, a sentir-me injustiçada, pedi permissão para visitar Lídia. Minha mãe retirou os dedos e fixou-me de olhos vermelhos. Depois de um esforço para entender, anuiu com um sinal de cabeça. Zarpei até casa da minha amiga. Mas quando lhe atirei a vitória, “passei”, ela não impressionou. Estacou na minha frente, sem parabéns ou sorrisos. Ouvi apenas, eu sabia que passavas, tu és boa aluna. Depois enfrentou-me de mau modo, quase zangada, e agora Bia, vais fazer o quê. Pensas que vais estudar. Pensas, mas ninguém na aldeia tem posses para estudos. E rematou sentenciosa, e menos a tua mãe que é sozinha a ganhar para ti.

Amuada,  virei costas e, cheia de vagares, encetei o regresso. Dava-lhe tempo para me impedir. Mas antes a ouvi, parva, pensas que és mais que as outras, mas não és. Corri desabalada para  casa. Lídia era assim, sabia fazer-me uma ligação directa. Lá em baixo, cada vez mais perto, o candeeiro bruxuleava na cozinha e o vulto de minha mãe cirandava de um lado a outro.  Um cheiro agradável a refogado deu-me as boas vindas. Como se nada houvesse, comentei natural, hoje, a professora pagou-nos um bolo de arroz.

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