sábado, 20 de maio de 2017

No Tempo da Escola

O fecho do ciclo escolar deixou-me à mercê de largos dias que, expurgados de deveres  e de serem férias,  ameaçavam eternizar-se na duração.  Alheia a planos, empenhei-me na brincadeira que nos juntava às tardes, em magote. A essa hora, a taberna zoava a abarrotar de suor e conversedo; a água escorria ao comprido das hortas, frescura abençoada que entranhava na boca aberta da terra exaurida; e o cansaço das mulheres espargia na lida, a casa num contentamento egoísta, voltaste. Paralelos ao mundo adulto, flanávamos à descoberta, vigiados das hortas e pomares pela sofreguidão de velhos hortelões, a maior parte das vezes submissos a mando desconhecido que descurava a colheita, um chão de laranjas e pêssegos que fazia dó e cobiça a quem, como nós, não lhe punha dente. E eles descalços, arregaçados acima da canela e encostados na enxada, uma carranca de mázura hirsuta à espreita por entre redondos de folhedo, ou junto à correnteza invejada dos morangueiros que inclinavam em recorte de folha a suculência vibrante de corações vegetais. Se um de nós experimentava descer o valado, logo atiçavam a fúria dos cães, monstros que galgavam lá dos fundos numa vertigem de poeira e dentes, feras  desembestadas de que fugíamos a sete pés. Finda a missão, os velhos davam voz de travagem e inversão de marcha aos bichos que estacavam de mau modo, a rosnar fixas vinganças  ao caminho da estrada sem um nada de nós. Depois, guardavam o desalento dos dentes e trotavam ao ignoto fim do pomar.
Ocupados pelo medo e sua força de propulsão, nada disto sabíamos. Já distantes e a salvo, coração a saltar no peito, por entre pedidos de, põe lá aqui a tua mão a ver se o meu coração não bate mais que o teu, e uma mão-guia a levar a outra até àquele cavalo desabalado, nasciam os fanfarrões, não tive medo nenhum, eu corro mais que aqueles cães, não acreditas,  já experimentei e eles não me apanharam. E depois alguém se lembrava, vamos à estação espreitar os comboios. E eu que a sentia particular, lugar nosso, não; se vocês forem, eu não vou. Contudo, Luís galgava montanhas no seu cavalo de ferro e esquecera projectos de mudanças de agulha e linhas férreas. E Lídia obstaculizava-me e renovara o ar empertigado. Se acaso a cruzava, seguia em frente de nariz no ar. Para ela, eu era ninguém, um insecto, nódoa  indesejável.
Às noites, minha mãe sentava-se quieta, olhos embaciados em fundura de poço para que não há caldeiro, o papel e a caneta de aparo a vegetarem, entregues ao desprezo da inutilidade. Nada sabíamos de meu pai. Nos meus pesadelos aparecia morto, tal qual a criança de que a mulher nos falara. Via-o esfacelar contra as rochas, aqui perdia um braço, ali surgia uma mão desarticulada, dedos sem gesto que apareciam e desapareciam, bocados de carne aguada colados em agudos de rocha. E, quando eu me debruçava de braço estendido e quase a roçá-lo, o corpo recuava levado por nova onda. E meu pai um boneco careca e esfrangalhado,  atirado à danação daquele mar que rugia a toda a volta do Forte. Acordava a esforçar-me por um grito, em sobressalto de angústia suarenta. À cabeceira, camisa larga de minha mãe era vela de bonança. A mão nos meus cabelos ordenava-me as ideias e com pano fresco expulsava a rã que se alojara, húmida e fria, em pescoço e peito,  foi só um sonho mau, filha; já passou.

E, a dar razão ao fatalismo popular, quando menos o esperávamos,  madrinha Carmelita deixou-nos.  A morte chegou-lhe durante o sono e foi a vizinha do lado que  estranhou o silêncio do rádio e ausência de mexida na cozinha.  Mal o alarme soou e a porta se abriu mercê da chave extra em casa da vizinha que insistia em entrar acompanhada, logo um conhecido se prontificou e correu na motorizada a avisar-nos da desgraça. E minha mãe viu-se obrigada a agir. Em França, a filha de madrinha Carmelita permanecia incontactável. Portanto, correu ela a ocupar-se das burocracias da morte.

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