quarta-feira, 24 de maio de 2017

No Tempo da Escola

Quando a vida retomou o seu curso, minha mãe trouxe o resto dos livros da filha de madrinha Carmelita e, em nossa casa, improvisámos uma estante com tijolos e tábuas. Depois de uma limpeza sumária  na casa da velha, fechou-a a prometer, um dia vimos as duas e dás-me uma ajuda, temos muito que atirar fora. Foi nesse tempo que comecei a considerar a solidão materna. Com meu pai ausente, e sem madrinha Carmelita, só eu restava. Pensei que talvez fosse por isso que começou, aos fins de semana, a limpar a mercearia do Telha e alinhou na loucura que assolava a aldeia, que seroava diária, abrindo e descascando pinhas e pinhões, primeiro um fogacho de faúlhas que iam quase de um monte a outro e as pinhas a estalar ao desafio, depois um batuque infernal de cunha e martelo que repercutia e fazia saltar os pinhões do interior das pinhas que o fogo não arreganhara totalmente, e a que não conhecia fim por adormecer a ouvi-lo. Semanalmente, a camioneta passava a receber, pesar e pagar o pinhão descascado e deixava novo carrego de pinhas. Numa noite de cansaço árido, enquanto meia deslembrada dormitava no banquinho baixo, arrisquei, mãe, eu vou para a costura? E a sua voz retesada, só se eu morrer. E eu, então fico em casa?, ela, assertiva, nem pensar, filha; tu vais estudar.  Incrédula, revendo as palavras de Lídia, abracei-a, mas a gente não tem dinheiro.  Assentiu, é verdade, mas tu vais estudar. Num repente, os sacos de pinhas pesavam-me; inquiri, mãe, as pinhas dão para pagar os estudos?, e ela a mirar o encardido nos dedos castanhos e resinosos, não filha, a gente farta-se de trabalhar, mas eles pagam uma miséria. Para poderes estudar precisas de outras coisas, livros, roupa...vamos dormir que hoje não faço serão, estou muito cansada.
E como é bom dormir dentro de um sonho, esperar em algo que se deseja. Foi assim que adormeci, um mundo de esperança a cavalgar o cansaço materno entranhado em castanha poeira. Contudo, quando Setembro entrou, e apesar da veemência inscrita nas promessas de minha mãe, assumi que Lídia tinha razão e desliguei da ideia de estudos impossíveis. Foi então que a Casa do Cabeço foi arrendada, soava na aldeia que a uma senhora muito fina.  E todas as atenções confluíram.
O edifício era um solar campestre e isolado, propriedade de gente que ignorávamos. Havia nele um quê de aristocracia subtil, uma poalha de fidalguia natural e sem alarde. Talvez viesse da sua dinâmica térrea. Ou da alva simplicidade de paredes rectas e janelas altas. Ou do beirado angelical a cingir telhado, janelas e portas. E também do caminho comprido, guardado por uma altura de árvores copadas, que terminava no varandim térreo e florido que corria a casa a todo o comprimento. Sempre a encontrámos despovoada e, apesar da presteza de desconhecidas equipas de limpeza a mantê-la intacta e inconscientes agitadoras do diz-que-diz, jamais alguém se propusera habitá-la. Na aldeia, corriam várias versões: que o actual proprietário era rico ao desbarato e a construção dava cumprimento a uma aposta; que a renda era muito cara e não havia  locatários a chegarem-se à frente; que era poiso de almas penadas, os pastores que dormiam nos campos garantiam a pés juntos ter visto janelas abertas e com luz;  que o proprietário se tinha suicidado lá dentro e fora encontrado em decomposição o que dava mau agouro à casa, Deus nos livre de morar em sítio que acolhe uma desgraça destas, meus ricos filhos; e havia até quem garantisse que um lobo solitário a rondava  e, em noites de lua cheia, se chegava ao portão e por lá se quedava em uivos lamentosos de partir a alma, que aquilo só podia ser homem em corpo de bicho, quem sabe se do tempo de reis e rainhas, quando desta casa não havia sinal e o lugar pertencia a outras gentes.

Munidos destes saberes, meio argutos meio temerosos,  saíamos à aventura pela tardinha e rondávamos, também nós, a moradia.  Chegávamos cansados da subida, comichosos dos pastos que infiltravam nas sandálias e alpercatas, sedentos.  Pelo caminho entretinhamo-nos a desfiar os medos inventados no emaranhado de conversas que escutáramos, schiu, parece que vi o lobo escondido naquelas silvas; caluda que ouvi passos e se calhar é o fantasma do morto; olhem, parece que a janela do meio está um bocadinho aberta. Mas os passeios na zona do solar pouco adiantavam. Espreitávamos do portão e nada.  Janelas e portas visíveis continuavam inertes. 

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