domingo, 4 de junho de 2017

Olívia

Há quanto tempo não nos encontramos? Já nem sei. Primeiro, aborreceu-me de morte a estranheza da tua torre solipsista que teimo em escalar: a constância do teu silêncio  feito de tempo, que interrompes em raros telefonemas; depois, chateou-me que não me atendas se ligo, tenhas sempre  telemóvel desligado (não sei porque o compraste), possuas  um computador  virgem ( e este, para que o queres?). Pasmo da tua solidão de sobro alentejano,  cortiça, musgo e líquenes a toda a volta; da tua orfandade sem palavras e que te marca os gestos; dos teus passos em eco pela casa, sempre mais que eles, o andar leve dos mortos que trazes contigo numa afeição que é demasia e grita do teu rosto para o meu, estamos aqui, não fomos a enterrar, acode-nos. Da tua expressão macerada que enfeitas de religião e companhia que não é. Da tua displicência alentejana que me preteriu por uma prima de Lisboa quando nenhuma de nós impedia a outra e mais me pareceu evitação propositada. E tudo isso, amiga, me afastou.  
Mas, à vista do meu silêncio definido e firmado em propósito de caminho encerrado, ligaste. Apresentaste desculpas. Desfizeste nós. Terás amigas comunitárias, gente boa e que só arreda pé de S. Pedro para ir ao médico, em excursão a Espanha, ou peregrinar  a Fátima. Mas nenhuma é eu. Nenhuma. Sou o teu lado perdido, um elo à vida que foste, alguém que - supões tu – vive no mundo que, em tempos, quiseste teu. E talvez por isso me aproximas e repeles. Quero fazer-te bem, mas quem sabe se também te deixo um travo no presente, se cravo um espinho pequeno que fica a incomodar quando te deixo. Num ai, a tua saudade afirmativa caiu sobre mim e desfiz o muro erguido entre nós. O definitivo passou a transitório. Um dia destes, o meu carro reaprende caminho e rola por esse Alentejo fora, sempre em frente, Évora, Reguengos de Monsaraz, S. Pedro. Aqui e ali, a claridade da cal a pontilhar a planície ainda enlaivada de verdes. Redondos suaves pegam uns nos outros, aqui uma anca, além o torneado de um braço, acolá um seio que se entrega. Alentejo é esta terra que o sol aclara  e martiriza, desmedida entrega a exalar num silêncio de mundo; é este pedido de mãos e dedos aflitos, a erguer-se de cada sobreiro desgrenhado; esta sublime resignação na humildade que consagra a pacatez de cada azinheira. E eu sou eles; e corro sentada na hipnótica fita negra que me seduz, escada em caracol a desembocar na tua rua murada de cal. Eu, que te tenho uma saudade feita de horas ensacadas, vou derramando bem querença por esta terra alentejana. Prescindo de procurar-lhe belezas ímpares, maravilhas, recantos, jardins de respiração florida. Gosto-a assim, em cheiros suados, carcomidos de calor; sinto a aspereza dos cardos nas pastagens, os pontiagudos do restolho nos pés, a comichão dos fenos por todo o corpo, a repelência disfarçada da vara no montado. Estremeço-a tanto na canícula que treme nos olhos, corpo a alagar, como nos invernos que paralisam o viço nos caules e chamam as artroses pelo nome.  O meu amor não obscurece às agruras estivais ou invernosas; não esmorece no confronto com a altura das serras e amenidade dos rios; não menoriza à vista de baías e enseadas, de praias vestidas de areia clara ou mares em fúria no encrespado da rocha. E nada é mais natural. O resto do mundo vejo-o sendo-lhe exterior; no Alentejo, a identidade é intrínseca e em alta voz. Grito-me.

E quando chego em tua casa vou assim, alentejanamente repleta. E o nosso amplexo é o abraço da terra que a si mesma se devolve. Um compasso de descanso. 

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