sábado, 3 de junho de 2017

Almada Negreiros (1893-1970) – uma maneira de ser Moderno

Até 5 de Junho, o museu Gulbenkian expõe a obra de Almada Negreiros, dos primeiros aos últimos trabalhos de pintura e desenho, percorrendo todas as fases da sua criatividade. E é exposição que não envergonha ninguém e pode mesmo emparceirar com outras que andam pelo mundo ou se visitam em museus estrangeiros.  A Gulbenkian está, mais uma vez, de parabéns.
Convém saber que Almada Negreiros era cheio de nervosismo criativo e não foi apenas um pintor modernista. Este homem de sete ofícios foi poeta, dramaturgo, escritor de boa prosa, conferencista e até bailarino (pelo menos durante um ano integrou o grupo de bailado  de Helena de Castelo Melhor). Um Artista enorme e  polifacetado. Há quem o considere genial.
É na qualidade de pintor-vitralista que  o Alentejo dele tem obra. Falamos do vitral da Capela de S. Gabriel no lugar de Marconi em Vendas Novas. Foi em 1951 que concebeu e desenhou, no seu traço inconfundível, o vitral que representa a Anunciação, encontro da Virgem com o arcanjo S. Gabriel - que deu nome à capela - a anunciar-lhe que ia ser mãe. E o vitral é lindo em todas as horas, mas o amanhecer e a tardinha arredondam-lhe a beleza  por efeito dos raios solares que, segundo consta, Almada veio estudar in loco. Uma formusura, o nosso vitral. E é como se um pedacinho de Almada nos pertença, que somos os únicos alentejanos a ter o vôo breve das suas mãos, um soslaio da sua mente.
Mas não é apenas por razões deste calibre que se  deve visitar a exposição da Gulbenkian ( e, se possível, a capela alentejana tão ao abandono). Mas também porque é preciso cultivar os olhos, atentar nas coisas belas que o homem cria e tanto desconhecemos. Um povo sem arte é um povo menor, falta-lhe dimensão. Apreciemos os artistas, a sua obra mostra o melhor do espírito português.
Podem começar pelo exterior, que a Gulbenkian é uma fundação envolta em jardins que são cetim a rodear a bela. E tudo isto no meio de Lisboa.  Vá, digam lá que não apetece tirar um par de horas e dar um passeio nos jardins da Gulbenkian, encanto natural projectado por Gonçalo Ribeiro Telles. Há por lá tanta árvore abençoada, tanto recanto acolhedor, e um tal cheiro a natureza viva que deambulamos prazenteiros... e o mais descobre cada um, que o efeito surpresa tem muita força. E eu vinha falar da exposição do Almada. Ah, pois. Há que voltar ao Almada.
Almada Negreiros é muito conhecido no mundo das letras pelo Manifesto anti Dantas (morra o Dantas, morra! Pim!), mas hoje não há tempo para falar da mordacidade ímpar do Almada e da quezília com Júlio Dantas. Hoje, brilha o pintor. Deixem-se ir, entrem no Museu da Gulbenkian, comprem o bilhete que nem é caro e disponham de mais uma hora ou duas só para apreciar o Almada, a alma dele (e a nossa) no papel, ali à mão, no que desenhou e pintou. Vão. Vale a pena percorrer espaços iluminados por tanto quadro e desenho. Aquele homem tinha asas nos dedos e a sua obra põe-nos a nós de bem com os artistas. É certo, era um protegido do regime. Mas não é com olhos políticos que se olha a obra de um pintor. Usam-se os olhos de gostar de arte e ser português, os  olhos de ver a eternidade que mora em cada homem. Que essa, podem crer, está em toda a mostra da exposição. Ali brilham quadros soberbos a par de cartazes de revista, desenhos que fez para alfaiatarias de renome, murais destinados a hotéis. E, em tudo que pôs a mão, a beleza irradia.
Lá está, ocupando toda uma parede, o extraordinário “retrato” que Almada pintou de Fernando Pessoa. Aquela enorme e hipnótica geometria de tons quentes a alternar com os sombrios e negros. E, no centro, o Pessoa tímido, o Pessoa anguloso e recatado e como que surpreendido a meio da escrita, olhos míopes por detrás das lentes, pássaros medrosos prontos à fuga. A um canto da mesa, a revista Orpheu. E juro que a alma fraqueja e ajoelha perante aquele quadro que é Grande e não apenas em centímetros. E, calculem vocês, Almada Negreiros veio a morrer no hospital e no quarto onde Fernando Pessoa se finou. E depois ainda dizem que não há coincidências!

Vá, vão ver  o Almada. Façam esse favor aos olhos e ao espírito (se quiserem, alimentam também o corpo que têm lá por onde). O Almada, assim posto na Gulbenkian, faz bem a tudo.

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