sábado, 10 de junho de 2017

Uma Obscura Árvore em Claro Sol

Há um prenúncio de calor na frescura da manhã que amarela soalhenta. Lá fora, o contentamento solto dos pássaros anda a esvoaçar na brisa bebé e infiltra pela janela semiaberta.  Sem gente, a minha árvore desinibe e entretém-se a sugerir,  ramos estendidos em insidioso convite de verdes, aqui e ali um eriçado de tronos barrocos que amarelam e, a seu tempo, tombam e morrem a golpes de vassoura, devêm lixo. Mas hoje são garridice vegetal, chamariz de células, laço de fita em pele arbórea. Que chama a algaraviada dos pássaros. Esta árvore, piano de sala que não tenho, é deus de zelo, sinaliza e guarda a casa em amplexo mavioso. Alberga melros, rolas, pardais e um  sem fim de ignotas espécies. Mansamente, centímetro a centímetro, tem-se aproximado e quase se debruça na minha janela onde a cloaca dos pássaros deixa restos que somem em  higiénica sacudidela. Perfilada, o corpo denuncia-lhe o esmero no lado campestre e a saudade de estar entre iguais. A minha árvore é um pequeno deus que não quer ser deus. Mas continua a crescer e elevar-se acima das outras, alegria sinfónica  dos habitantes alados. E minha. Se penso nela, logo a alma se enternece e me traz, vá-se lá saber porquê, o mar estival que sei de cor. O mar feito praia lisa e  que toda se oferece em movimentos suaves e lisonjeiros. Que beija os artelhos a convidar o resto do corpo, que vai subindo em frescura, mais acima, mais acima, mais um pouco. Até à plenitude liberta e inteira da osmose, a dissolução navegante de quem sobrevoa os males de viver e se dissolve no elemento aquoso. Que é  isto nadar: a profunda comunhão com a água, um enlevo suprarracional. A gente caminha pela estrada da razão, mas enleva no que dela  transcende. E que essa transcendência se firme e afirme por via também dos sentidos é a contradição mais bendita e benquista do ser humano. E nisto estou na Feira do Livro bordejada de lilás, os jacarandás num sorriso a escurecer, vieste. E eu perdida na sinuosa contorção dos ramos, anos e anos a ganharem a forma que me abisma em cada olhar, perplexa do mistério imerso na miríade florida e encaixada em nuvem, presa ao violeta intenso de um mais afoito, corpo de poesia declarada, vejam-me. E depois arranco-me e deambulo naquele jardim da alma que gosto de percorrer com vagar, a ler títulos, antevendo o que possa tornar meu. E nenhum momento é tão grande como esse em que desejo sem ainda ter (ah, o poeta, como ele sabe dizer isto). Por vezes, surgem-me pessoas da capa dos livros. Inexplicáveis. Porque sim. Agudamente. São sinais.  Livros que pedem, compra-me. Ou gente que quer ser vista. A relembrar-se. Porque não vejo o que lá está, escritores a olhar-nos do fundo da sua  seriedade, queixo apoiado na mão. Vejo sorrisos rasgados que troçam brandamente da minha pessoa. Comovem-me estas visões, querem o quê?!  

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