terça-feira, 6 de junho de 2017

No Tempo da Escola

Amélia chegara à aldeia sem passado e soubera rodear-se da aura de superioridade natural: tinha empregada dentro de casa, um gerador que resfolegava na rua e iluminava, arrefecia e aquecia os interiores do monte; e um automóvel que conduzia a resvalar no pasmo das gentes. Ninguém ousava levantar cabeça a interrogá-la. E ela, qual recém nascido de banho tomado e estômago sem queixa,  apreciava a fita dos dias em satisfação virginal. A tudo atendia a sua curiosidade. Pela noite, apreciava o ruído dos ralos na terra, o canto alado dos grilos femeeiros, a extremidade brilhante dos pirilampos a que o povo oportuno chamava  luzecus. No passo certo das horas noctívagas, rodeada de papeis, sentava-se a trabalhar. Acompanhava-a o ruído dos ramos que estalavam nas árvores em volta, a madeira dos móveis a espreguiçar no centro do silêncio, um gato elegante e periférico de olhos em desassossego.   Pela tardinha, era vê-la descer em passeio no seu passo miúdo, primeiro à descoberta, mais tarde em exercício de convivência. Nos caminhos, os homens tiravam-lhe o chapéu e cumprimentavam sérios,  rugas franzindo o rosto escurecido de pó sem data e sóis arraigados. E quedavam-se densos, olhos incomodados de assim sozinha por todo o lugar, amiudada em sapato rasteiro e raso de poeira, desinquieta de olhos e mãos. Amélia não se incomodava, tinha-os num limbo de acenos e sorrisos sem palavras que não lhe descomandava o passo. Havia de passar tempo até chegarem à conversa, que a confiança nasce e cresce como qualquer legume:  a poder de tempo, rega e paciência.   
Depois que minha mãe aceitara a oferta de emprego no Monte do Cabeço, a aldeia inteira a empurrá-la, vai, não sejas parva, foges ao trabalho do campo, ficas estimada e crias a gaiata que com ele não podes contar, eu vivia de empréstimo e suspense. Passava os dias enjoada de nada para fazer e, sem a companhia dos meus amigos dilectos, as horas desmaiavam  em semi-morte. Estava proíbida de passear com o grupo de garotos que cirandava por todo o lugar, por via de um pessegueiro carregadinho que, de uma hora para a outra, aparecera aliviado de pêssegos. Apesar da minha aplicada veemência, nunca tirámos nada, perdurou o não implacável. Em compensação, minha mãe entendia o cativeiro e deixava que a esperasse a meio caminho. À hora marcada, depois de muita ânsia aos ponteiros, saía de casa em corrida de fogo à vista sem bombeiro para acudir e, num relâmpago, estava sentada no marco combinado. E aguardava. Meias horas a enfiarem umas nas outras.  Na volta, por vezes dentro do breu, perguntava tudo sobre a casa, D. Amélia, as refeições, o trabalho, quem a frequentava...mas minha mãe era pouco loquaz e apresentava-se num cansaço só. Ou seria D. Amélia que não desejava alimentar a calhandrice de comadres e lhe fechava boca e ouvidos. Uma tarde, a surpresa, este ano vais estudar para o colégio. Eu a meio da vereda, espeque mudo, as tarantas das pernas, acudam que perdemos o andar. Na vila, observara uma aluna do colégio e o uniforme embiocava qualquer dos  meus vestidos. Minha mãe a validar a decisão, D. Amélia veio dirigir o colégio, foi por isso que alugou a Casa do Cabeço.  E a antecipar dúvidas sobre finanças, vai arranjar-te uma bolsa de estudo e não pagamos; do resto trato eu, filha. E enquanto eu puxava dos reflexos e as pernas desenxovalhavam do estupor, virou-me o sorriso de tempos felizes, todo subido aos olhos, vês, vais estudar e hás-de ter uma roupa como gostas, igual à da menina que vimos na vila.

Porém, ao invés de largo contentamento, atemorizei a pensar nos colégios que só conhecia de um ou outro livro, no terror das meninas e professoras novas que ia encontrar, na catástrofe de uma bolsa de estudo que nem arrisquei perguntar o que seria. Fixei-me em D. Amélia, nos seus olhos inquisitivos e grandes como amoras terríficas, na altura de saltos em que se passeava, tic, tic, tic. E assustou-me o comando daquele  palmo de mulher. Apesar do sorriso retornado a antes, nem minha mãe parecia contente por inteiro. Talvez canseira. Ou por meu pai já fora do segredo, mas sem visitas. O certo é que a novidade desprendia uma sensação estranha, espécie de azedume e travo desconhecido.

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