domingo, 11 de junho de 2017

Regressar de Gosto

A primeira ida à praia é, em cada ano, memorável. Sei, repito-me anualmente, post atrás de post, na tentativa de erguê-la das origens mais fundas do que em mim permanece de seu. Não que a procure cá dentro como um resíduo. Nada. Fica-me a pulsar nos sentidos e palpita na mente, é aroma disseminado no meu cheiro natural de velhice em combustões lentíssimas, células e sangue avulso. Em excesso. A escrita é a rasoira que esbarronda sobras, que não se pode viver entornando restos de maré pelos dias, salgada ao minuto, com búzios hipnóticos em sugestão de líquidas viagens multiriscos. Ninguém aguenta. E portanto. Resta-me verter esta paixão em palavras. Que há pior (ou será melhor). Lembro um amigo a contar de um amor que o arrasava; nascia-lhe à presença amada uma inquietação do corpo todo, o suor a nascer-lhe em gotas sobre o nariz, coração desengalgado. E era coisa que o preocupava, olhava-nos a inquirir, acho que morro, não sobrevivo à sua presença constante, os nossos encontros exaurem-me, aquela mulher espapaça-me a vontade. E nós, vida de amores comuns, invejávamos e falávamos em novidade e no hábito que aplaca corpo e espírito. Mas ele que não,  era exagero subtraído ao tempo e já abarbatava anos de constância; sentia-se insolvente, temeroso de futuro tão amorosamente desmedido. Não sabemos o que terá acontecido a esse amor invejado. Para nós, seu pequeno círculo de confidências, mora intacto na bainha interna do tempo, não desfaz. Mas o meu amor pela água salgada é outro,  não se diz em cataclismo. É bem-estar em crescendo desbordado e que conto, segura de que qualquer sensação tem com o sinal que a representa, a relação da foto com o original: são ordens qualitativamente diversas.
Amo a praia dos dias primeiros, a areia enrugada aos altinhoslavrada de vento como deserto, sem peso de genteaqui e ali, sinais da última maré. Traço-lhe uma vereda de passos e estamos quase a sós, sem ruído humano, gargalhadas, telemóveis, gasóleos de motor que abandalham  riscando ondas e ouvidos. E assim a apercebo melhor no seu natural de água que desmaia na areia e grácil se repete em risos pequeninos.Ondas são abraços espremidos de violência impactada por emoção e sentimento. Apenas abraços que não fartam, toma um, toma dois, toma três. E mais um,  e outro e outro. Não têm futuro? Têm sim, o porvir mora no abraço seguinte em tudo novo e semelhante ao anterior. E eu, corpo a adormentar na areia banhada de sol, atendo a esta voz sonora de ondas que nascem sabe Deus onde. Embalo em venturosas horas. Recarrego. 
Ao fundo, recorte de escura nitidez,  a serra deleita preguiçosa, estou aqui, moro nos cheiros agrestes e nas veredas, nas subidas a esfalfar, no esboroado em carne viva que os homens abriram. E dou flor e reverdeço em cada primavera. Ainda sobe por mim gente interessada. Ainda espero na reflorestação. Ainda sou eu à beira mar de pés na água. Não deixem perder as minhas espécies num fogo qualquer ou por alguma ninharia empreendedora. Acudam a quem, ano atrás de ano, vos guarda e protege.

E de repente, uma gaivota tão perto. E outra. Olho o dia a deslembrar. É hora. Levanta-se uma brisa. A água em espelho de sol encrespa de leve, as ondas deslaçam mais devagar e a serra postou-se em guarda sombria. Se eu tivesse uma casa nas dunas ficava até ao cansaço do sol a desaparecer talvez em raios rosados; ficava até que a brisa me derrotasse; ficava até que a noitinha estendesse o manto a empurrar-me, vai, queremos ouvir-nos uns aos outros sem testemunhas. Mas não vivo nas dunas. Dou-lhe as costas devagar. Despeço-me em promessas a que é já indiferente. Concentra-se. Começa-lhe a hora de ser para si mesma.

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