domingo, 18 de junho de 2017

O Sentido da Vida

No Alentejo, o verão é treino de inferno. Sofre-se com calma, no anseio de noites frescas que um sopro de brisa aligeire, olhos a adivinhar no astro mudanças moleculares. À noitinha, os homens sentam à porta a moíção de trabalho e calor, dedos de pés esticando prazenteiros livres do aperreio de sapato e meia, o suor a refrescar nas reentrâncias; e há qualquer coisa de terno na timidez indefesa da carne a  branquejar  sob o  arregaço de calça que o regadio ensejou. Os homens esperam o dia novo. Que surge, benza-o Deus, muito igual ao anterior. Em calor, luz e sofrimento. Os alentejanos que se cobrem como mouros, a defender-se da torrina e dos mil insectos que o verão importa.
Um alentejano na praia não é qualquer pessoa. É ele. E  mais todo o calor que já viveu e o vincou em braços e pescoço. E mais o suor que destilou na terra que é sua e ama de paixão. E mais a imensa saudade da água e que lhe mora na alma. Que não pode este sentimento dizer-se apenas saudade; é funda necessidade, míngua exacta, falta que não evapora na beira de um rio. O mar sim. O mar tem a vastidão da sua necessidade e alberga toda a frescura das brisas. Ali, não precisa poupar na pródiga liberdade da água que lhe eleva o corpo e o pega ao colo. E descansa sem remorso na inutilidade da areia onde nenhuma enxada tem préstimo. A praia é breve recreio onde despe calores e angústias, alija males de viver e se transfigura empenhado em respirar, cheirar, tocar o ritmo das ondas. Extasia  no perfeito milagre de saber como matar o calor que sente.
Mas ontem, enquanto muitos vogavam de corpo e espírito, tu fugias do fogo traiçoeiro. Enquanto uns tinham sol e água fresca em céu sem nuvens, tu corrias com a família para o carro. Tu apressavas-te para a morte, depressa, depressa, é preciso sair ou morremos queimados. Enquanto nas praias a água abraçava os corpos e os apaziguava, o fogo devorava mata, devastava caminho, corria às cegas destruindo a esmo. Na praia, os alentejanos olhavam o dia claro e a rir, ainda bem que viemos. E tu num repentino beco sem saída, cercado, o fogo e o vento contra ti, e agora. Os gritos, a aflição, a dor mais incomensurável e veemente que existe. A Dor de te saberes dentro da pior morte e ninguém para salvar-te. A tua dor penetrante de impotência a varar-te, vamos morrer. E o fogo máquina terrífica e ignóbil, sem pensamento, apanhou-te e andou. Na mesma hora em que tanto português cabeceava de sono e calor, pasmava para a TV, tomava banho de mar, partiste dilacerado em dor que não se descreve, ardias por junto. E tu já não eras tu, sobrou  de ti um resto calcinado de ossos; nada se sabe das tuas carnes, dos desejos que tiveste, do que pensaste, do que foste. Recuso acreditar que não há despojos. Acho, vê tu, que ficaste na brisa que a chuva traz e que jamais te afastarás dela que, ontem, tanto te faltou. Agora que sabes mais que nós, diz-nos, o que fazia o Deus justo e amoroso nesse momento.
À noitinha, inconscientes da desgraça, ignorantes deste luto nacional, os alentejanos viajavam para casa, vidro aberto e braço fora das carrinhas e automóveis, agradados da chuva e do cheiro a terra molhada, a contornar as árvores caídas pelas estradas. Pacientes. Felizes. E tu já liberto de todo o mal a ouvi-los e a pensar, também gosto do cheiro a terra molhada. E eu garanto-te que não sei como és capaz de esquecer o terrível cheiro a carne viva queimada. A dor. O lamento profundo e insondável de haver tal morte.

Descansa em Paz.

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