sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Provavelmente não há o Deus que imaginamos a pôr alguma ordem no mundo. Um ser exterior que nos organize a vida e que, se bem pensarmos, se pauta pela paciência nas relações parentais, crianças asneirentas que somos. Apesar do atestado de menoridade que passamos à espécie, e ainda que Ele não exista, há-de haver um acaso inteligente – mesmo muito inteligente e até poderoso, que criou onde a mente humana soçobra.
Ora, num desses acasos do destino, não dos mais inteligentes – foi mais um acaso amoroso –, uma das primas recém-casadas veio a nossa casa passear a felicidade. E nós a olhá-la em meia desconfiança, à procura da garota que nos gastava mãos cheias de açúcar  a queimar sem sabedoria o melado dos pudins. Mal ele começava a granular, o açúcar está estragado, vai lá deitar fora, pomos outro. Prática, deitava novo açúcar na caçarola e logo que começava a granular, oh, este também está, deita fora. E gastaria quilos se nós os tivéssemos, ignorante de que o granulado de açúcar é o passo anterior ao formar do caramelo. Confesso que, nesse dia de visita, a olhava também a procurar sinais de casamento que não sabia quais fossem, sobretudo porque ela me pareceu a mesma loirinha bem-disposta e cheia de ideias malucas. Por outro lado, havia alguém que nos atraía mais: o marido. Mas também nele só encontrámos um rapaz alegre de melena comprida em ar de rock. Quando saíram, ficámos a olhar uns para os outros e eu, que te pareceram? A minha irmã, não parecem casados, pois não? Eu, pois é, parecem dois miúdos.
Posto que o casamento não se lhes notasse, o nosso jovem primo interessou-se pelo que fazíamos, como passávamos o tempo – lisboeta a preceito, devia estar contente por ter descido, sem querer, à pré história; e tudo inquiria -. E foi assim que contámos a nossa desgraça de nem rádio. E ele, eu arranjo rádios. Vão lá buscá-lo. Mas nós estarrecidos de esperança, abalholhados e a sorrir, de certeza um pensamento comum, "tu eras a única pessoa que a gente queria". A voz dele a sacudir-nos, vão lá, que quero vê-lo.  E logo alguém subiu ao sótão e o trouxe. Uma lástima empoeirada e cheia de cocó de pássaro.  Ele olhou e, que se ouvisse, não formulou juízos de valor. Quis limpar-lhe o pó, mas afastou-me a empurrar o aparelho para dentro de um saco plástico, desimportado de pormenores, deixa estar que eu limpo-o lá em casa. Vou ver o que posso fazer. E partiram os dois. Nós todos a acenar ao casamento de brincar e a desejar que o novo primo se lembrasse de rejuvenescer o rádio.
Passaram os meses e nada de rádio. Quando víamos o primo ele batia na testa com força e, ahnnn….bolas! Esqueci-me outra vez do rádio. Não entendíamos se tinha esquecido de o arranjar ou de o trazer. Vieram frios e calores, primaveras incipientes e bulbosas, outonos pelo chão a restolhar. Nasceu-lhes um filho. E comecei a preocupar na ideia de que o rádio do meu avô tivesse ido morrer tão longe. Já o preferia para ninho de pássaros, feito múmia no sótão. Parecia-me até que essa morte próxima era mais ao jeito do meu avô. Aos serões, falava nisso e o meu pai dava-me razão, ainda que não pelos mesmos motivos. E aproveitava para desdenhar do lisboeta e das suas capacidades com os transístores. Eu ofendia e saia da mesa arrependida de repuxar a conversa, mas, quando descia o degrau da cozinha pequena, ainda ouvia os finais, és mesmo anjinha, tu, acreditas em tudo.
Certa noite, os quatro sozinhos, bateram à porta da frente. Só podia ser visita. Munida de candeeiro e curiosidade, fui abrir. E a comitiva a espreitar atrás, o meu irmão bem no fim do cacho, um medo reticente em alarme de pernas e voz, a inventar delicadezas de larápio, e se forem ladrões
       Mas, destrancado o ferrolho, só o primo. Estranhámos. Ele sorriu e  entrou no carro. Retirou um embrulho, a porta do automóvel bateu enfastiada, num aborrecimento de deixa-me em paz e, num toque de sino, o rádio! E um sorriso lindo a envolver; que embelezou à expressão, o arranjo é grátis. Fomos todos, corredor fora, em procissão com vela e tudo, até à cozinha. E, quando poisou o aparelho sobre a mesa, pasmámos. Não parecia o mesmo. A bem falar, nunca o tínhamos visto assim. Estava novo. E ele a curar-nos do espanto, estava tão sujo que tive de pô-lo na lixívia, ficou quase uma semana de molho. Engoli em seco, um bocadinho envergonhada. Rodou o botão e ouviu-se uma música. Distinta. Clara. Nada de balbucios rudimentares. Aquela gente estava com a força toda. Já de saída, virou-se para nós e, pus-lhe pilhas novas. E desapareceu no escuro, os faróis a alumiar bocados de árvore, as laranjeiras enormes e sombrias, o meu irmão a impacientar-me a mão livre, vamos para dentro que estou a ver ali uma sombra a mexer e tenho medo. E, em peregrinação, regressámos à cozinha, a  matar a saudade do rádio.
No dia seguinte, mal o liguei, percebi que não sintonizava nos mesmos números, mas lá fomos procurando e encontrámos todos os postos excepto o Rádio Clube, já então mudado em Rádio Comercial.

Ainda não descobri o que aconteceu à Rádio Comercial, qual o caminho que tomou, mas desapareceu de todo. Um descaminho. De início, deduzi que o meu primo a derretera com tanta lixívia, que seria alérgica e não se aguentou na barrela. Hoje gosto de pensar que o meu doce avô também preferia aquele posto emissor. Que arranjou modo de levá-lo e está no céu ouvindo a Rádio Comercial. Porque, como reconhece Pessoa, as tardes da eternidade são muito enfadonhas.

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