terça-feira, 22 de outubro de 2013

Pré História de um Amor

O tempo toca-nos em modo próprio. Modifica-nos o corpo, a alma, os gostos. À medida do desgaste, mata-nos os amigos, traz-nos rancores antes inconcebíveis, quotidianos fastidiosos, anseios nunca imaginados. Diz o povo que ele tudo traz e tudo leva. Neste ditado, palpita a viva fatalidade  de  Anaximandro “os seres pagam pena uns aos outros..” ou mesmo as palavras de Cristo, “A quem muito foi dado, muito será pedido”. Se pensamos nas três proposições, verificamos que não serão apenas sintoma de humano fatalismo. O sentido de posse é-lhes extrínseco, antes prefiguram o efémero vital que encarnamos – somos seres passantes. As virtudes de cada homem  pagam-se sabendo que uso servem e concretizando-lhe a utilidade. Por sua vez, a religião traz o tema ao campo do dever; exige, obriga, individualiza. Concluindo: nada nos pertence verdadeiramente, nem nós mesmos nos pertencemos. Assim se talhou a minha base educativa. Talvez que, nesse tempo, a da maioria dos portugueses. E, quem sabe, dos europeus.
Mas, enquanto a minha geração crescia com a rádio e assistia à eclosão e açambarcamento da TV, na minha família ela senhoreava. Teria uns quatro anos quando vi um gramofone e sua caixa de madeira. Dava-se a uma manivela e saia música. Fascinei. Vezes infinitas, pedi ao proprietário que repetisse a proeza e enquanto ele dava à manivela eu encarregava-me de espreitar por todos os lados da maquineta, sem atinar com o milagre. Era um homem penteado, barba feita, para o comum da aldeia, um senhor. Despedimo-nos com a promessa de voltar, mas, apesar de instantes pedidos, a minha mãe não me fez caso. Anos mais tarde, contou-me que era doente do Caramulo, tinha levado o gramofone e não voltara a casa. Pensei que o Caramulo fosse doença grave; lembrei o senhor a dar à manivela para mim, enquanto as mulheres à boca pequena, está tão bem encarado, mais gordo, estimadinho, olha a pele dele, nem parece que andou ao campo. Muitos anos depois, passei ao sanatório do Caramulo e pareceu-me ouvir o som do gramofone a sobrevoar o abandono do lugar. O senhor deve mas é ter-se curado e continua a dar música ao fresco das serras.
No meu período de escola primária, conhecia os rádios das duas tabernas e  tomava-os como enfeites, tal a algazarra masculina. O meu padrinho, que era homem de aproveitar tudo, a rir com seus dentinhos de coelho – os meus professores, aquele espaço na dentição chama-se barra ou diastema - varre lá aí a taberna ao padrinho. E deve ter rodado o botão do rádio. Parei logo com a poeira, dei um pulo e sentei-me na mesa do chinquilho a ouvir. Ele rápido, a salpicar gafanhotos para todo o lado com o nervoso, sai já daí, as marcas estão a giz, apagas isso tudo aos homens. Varre mas é a casa. E rodou de novo o botão. Fiquei a pensar que bem merecia a barra ou diastema dos coelhos.
E um domingo em que visitámos os meus avós, surpresa! Um rádio sobre a mesa. Cresci de alegria. O meu avô sentou-me no trôpego dos joelhos e ficou a girar um botão que fazia um pau fininho avançar e recuar numa janelinha com números. Quando saí, já memorizara o número de cada posto, os meus dedos pequenos sobre os dele a rodar o botão, avô eu sei, eu sei. E ele a rir baixo, uma poalha de ternura  no ar. Diziam-me, em que posto está, e eu ia ler e depois, Rádio Clube, Emissora Nacional, Emissora Dois, Rádio Graça.
Na minha mente, a cada um dos postos de rádio correspondia uma imagem. Assim, o Rádio Clube era uma coisa desportiva com meninas de sainha curta e raquete ao ombro a jogar ténis, que era um jogo que não sabia como se chamava, mas apareciam meninas assim nas fotonovelas a fazer propaganda ao modess; e eu lia naqueles balõezinhos com frases que elas iam ao clube com modess pétala macia, cujo também julgava ser um homem, por sinal com nome bem estranho, mas sendo brasileiro…porque não? E no boneco havia ainda os rapazes com camisolas brancas de risquinha no decote. Na minha leitura, esses eram os modess. O Rádio Clube era o meu posto preferido. Além disso, falavam do Omo que eu pensava que era uma pessoa porque lavava mais branco. Admirava-me era que fosse homem e não mulher, mas pronto. O mundo não pode ser todo igual. E nem eu sabia de máquinas de lavar.
Depois, havia a Emissora Nacional de que gostava menos, cantavam fado, ouvia-se o presidente de vez em quando e pensava que era um palácio enfadonho e aborrecido todo cheio de alcatifas onde as minhas pernas queriam avançar e não podiam. De vez em quando, sonhava-me perdida no meio das alcatifas que inventava, as pernas presas, dava um reviravolta na cama, enleava-me nos lençóis e caia estatelada no chão.
A emissora dois era uma entidade desconhecida cheia de músicas que não acabavam. Ninguém cantava. E isto enchia-me de insistências e dúvidas que aborreciam toda a gente. Foi a única rádio a que não dei imagem.
Finalmente, o Rádio Graça, onde eu julgava que tudo era grátis e supunha ser uma espécie de parodiantes de Lisboa, acerca de quem a minha avó, “têm graça; têm muita graça”. Imaginava um armazém muito grande com a música em fundo e onde toda a gente bem disposta e bem recebida, cada um a retirar o que entendesse. Mas quando pedi à minha avó para irmos até lá, ela olhou-me como se fosse maluca e, isso não pode ser, vai para a rua brincar e deixa-me trabalhar em paz.

A compra do rádio guindou os meus avós à riqueza. Os meus avós. Que não sabiam ler, pagavam o rádio a prestações e tinham uma cozinha de chão de terra. Mas que me  interessavam tais pormenores? A minha mãe dizia-me que não comprávamos um por falta de dinheiro. E a lógica infantil fez o seu caminho. 

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