terça-feira, 15 de outubro de 2013

RUI

Há olhos problema. Miram-nos de dentro de um intrincado que lembra um fino enredo de fios, sem vislumbre de ponta. Foi assim que te vi nos poucos meses em que foste meu aluno. Meu aluno! Isto sim é enredo. Eu saberia mais de alguns assuntos, mas tanto aprendi nas aulas. Tanto. Olhava-vos e o desabafo de Matilde Rosa Araújo para a sua primeira turma, a acotovelar-me, “e como éramos primários e sozinhos…”. Quem sabe, todos sejamos primários e sozinhos. E tu eras sozinho. Alto e sozinho. Sentavas-te ao fundo da sala e ninguém a teu lado. Parecia-me então que preferisses assim, lacónico e atento. Entravas e saías sem que se desse por ti, na algazarra da turma. Quantas vezes te olhei as costas direitas, a cabeça que subia acima das outras… e algumas delas chamei-te. Voltavas atrás. Falavas o essencial, mas olhavas bem dentro dos meus olhos e eu observava o teu emaranhado de fios, tanto nó! Mas conversávamos sobre outras coisas – eu conversava, que tu, frases curtas e monossílabos. Se te lembro, continuas a olhar-me do fundo de um quadro de Modigliani, a floresta negra das pestanas a debruar-te o imenso tormento verde. Um rosto trágico. Sério. Sem o ameno de um sorriso. E eu, que não sei desfazer tragédias senão com palavras, perguntava-te umas coisas, contava-te outras… uma estratégia palerma, mas não sabia de outra forma para me aproximar do enleio na tua meada.  
Um dia, fizemos grupos de trabalho e deixei livre a formação. Quando anotava a constituição dos grupos, verifiquei que não pertencias. Continuavas lá ao fundo. Sozinho. Cabeça erguida. Inquiri-te. Respondeste que tinhas tentado dois grupos e nenhum te quis. Começou-me a subir uma raiva fininha, mas instei a turma. E um silêncio de moscas. Renovei-me na questão. Nada. Até que uma aluna espevitada, stôra, ninguém o quer, ele não sabe, falta aos trabalhos, não ajuda. Coraste violentamente. Perguntei como podiam antecipar o teu comportamento. Logo, foi assim no trabalho anterior, na disciplina de. E o peremptório de alguns grupos, com ele, não! Passei-me. Era um décimo ano, a maioria alunos do colégio. As meninas a vociferar que não te queriam, fazias-lhes baixar a classificação. Então, peguei na religião que arvoravam a todo o momento e disse-lhes que não era cristão o que faziam, que não compreendia a sua posição, as avaliações eram individuais e não de grupo. E integrei-te no grupo delas, propondo-me, intimamente, acompanhar-te mais – eras mais velho mas indiciavas atraso, confesso que supunha que a tua idade mental seria inferior à cronológica e que um curso profissional te servia melhor que a área de Ciências e Tecnologias, que, à época, tinha outra designação. E julguei o problema sanado.
Porém, no dia seguinte, o teu grupo comunicou-me a sua dissolução; optavam por um trabalho individual. E dessa vez a minha voz tremeu e devo ter-me irritado, não autorizei trabalhos individuais e mantive o grupo. À tardinha, tinha o encarregado de educação de uma delas em minha casa. Para, supostamente, me dizer que a filha era católica e cumpria com os deveres da sua inatacável religião. E acrescentou displicente, num repto quase sussurrado, que eu te protegia por seres filho de quem eras. Eu. Que ainda hoje desconheço quem sejam os teus pais. E que fui educada no mesmíssimo colégio. Foi a primeira e última vez que um encarregado de educação pediu contas em minha casa. O teu grupo funcionou e apoiei-te na parte de trabalho que te coube. Fizeste uma apresentação razoável.  Parecias satisfeito.
Bem mais tarde, já quase no fim do ano, as garotas pediram desculpa. Mas, entretanto, tu já tinhas desistido da escola, os professores aliviados. A mim, desculpa, soou-me a traição, pareceu-me mal. Mau grado a idade adulta, a juventude crédula remanescia-me pacífica. Podíamos mudar alguma coisa. Os dois. Senti-me abandonada quando, sem aviso, deixaste tudo.
A vida leva-nos onde quer e não voltámos a cruzar-nos. No entanto, soube que casaras. Porém, mal um filho nascido, o divórcio. E pensei que o enleio estaria ainda intacto, no teu fundo verde. Desconhecia, mas falavas em suicídio. Que agora consumaste. E lamento, lamento, lamento. Devia ter procurado melhor, achado uma ponta que, no meu razoável de desenlear fios, quem sabe, uma linha inteira sem um nó. Mas não desenredei nada, não andei um centímetro. Por certo, contribuí no aperto.
Talvez que, enfim, os teus olhos, desenleámos. E a floresta das pestanas em repouso, sem uma sombra a afundar.

Dorme. Dorme que o mundo te pesou sempre. E que um anjo  toque de leve as ondas do teu cabelo e a paz te acompanhe no eterno.

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