domingo, 6 de outubro de 2013

Pequenalmoçar

Talvez eu devesse escrever sobre política, porque se vive ainda o rescaldo de eleições autárquicas. Ou seria mais eficaz alargar horizontes e discorrer acerca de um problema premente que seja notícia no mundo. Mas não me apetece. E neste espaço só escrevo de apetite. É tão reduzida a gente que me lê, que, sorry, a esqueço. E é bom que assim seja. Lembrar-me seria contrair um quê de obrigação. Sou assim, de me obrigar a coisas que não passam pela cabeça de pessoas sensatas. Mas lembram à minha.
Posto que sou livre neste bocadinho que ainda não sei bem se é de tempo se de palavras, vou escrever sobre deglutição. Pois. Comida.  “Coisas” que se engolem e me fazem feliz. Estou precisada de uma felicidade de bolso que comece no palato. Pode parecer assunto desinteressante, porém, o livro mais hilariante que li de Isabel Allende aborda a relação dos alimentos com o amor, erotismo e afins. Penso que contém receitas que comungam do espírito do livro. Com humor do bom. Chama-se Afrodite e julgo que lhe tenha servido de terapia após a morte da filha. É assim mesmo, enquanto alguns afundam a carpir dores, ela o fez de variados modos, e durante vários anos, que um filho não se nos morre sem que a morte nos revolva da cabeça aos pés. Allende teve necessidade de se resgatar à morte. E Afrodite é um poderoso documento, a ressumar vida e  boa disposição. Tem vezes em que somos assim, díspares, curamos a tristeza – melhor é dizer que a esquecemos no momentâneo – com bom humor.
Se olho para a minha árvore genealógica, desatino deste amor à mastigação. Não descendo de bons gourmants e nem de gente adiposa (em tempo de vacas magras quase ninguém era gordo). Desde cedo me habituei a olhares piedosos e meneios de cabeça, “tão magrinha”, e logo, “gordura é formusura”. As refeições empanicavam-me.  Sempre que a minha mãe chamava para almoço ou jantar, acorria em lágrimas, o meu pai a rir alto, tás a chorar para quê? Nunca vi ninguém chorar porque vai para a mesa. Um sofrimento pegado. Não conseguia engolir a comida que rodava de uma bochecha a outra em repugnância que impacientava a minha progenitora, o sabor a adocicar e a tornar-se mais intransitável a cada volta. E nem à vista de uma palmada bem assente, descia a ponte levadiça da minha garganta. Por vezes, a minha mãe abreviava e alimentava-me como um bebé. E aí era certo, vomitava tudo. Nessas alturas, a minha mãe, que não era santa nem nada e se preocupava com o ínfimo que me ia parar ao estômago, desarmava; limpava-me a boca e dava ordem de sair da mesa. E lá seguia, contente. De estômago vazio. Desse tempo não guardei outros sabores particulares com excepção de suspiros e bananas, iguarias que só provava de longe em longe.
No entanto, aos onze anos, o subtil prazer da mesa foi-se chegando por via de uma amiga de férias que comia melão, fruta que eu detestava, com tal enfâse que me causava inveja; além disso, descrevia-lhe o sabor em meneios artísticos de rolar os olhos e pôr a mão no estômago. Em apoteose, dizia-me, experimenta, vais ver que gostas, o melão sabe a flores. No primeiro dia comes só um quadradinho, no segundo experimentas dois e depois já comes talhadas inteiras como eu. Naquela colónia de férias tínhamos monitoras, mas ninguém como aquela amiga - escrevemo-nos anos e anos até que filhos e marido a retiraram às letras – me levou a apreciar o que se come. E era vê-la no dia em que experimentei, em suspense, a observar com alguma ternura o resultado da sua sugestão gastronómica. Para ela, eu conseguir comer um quadrado de melão, situava-me no mundo; é que, sem essa experiência, seria uma pessoa incompleta. É claro que essa amiga de férias fez vida na restauração.

Hoje vivo numa terra a formigar de gente, mas decerto não há muito quem se sente à mesa com a agradabilidade que me anima. Porque em cada dia há o requinte de ser manhã e haver uma cozinha só para mim a cheirar a café e torradas. De eu ser nela descansada, o corpo a sacudir sono e deixar cair colheres, os movimentos num atrofio, pés a tentarem recuperar agilidade enquanto a manteiga toda se derrete a insinuar molezas que os dentes apetecem. E haver tempo para o calor da chávena nas mãos que sempre me puxa a melancolia. E logo te sinto ali, imagina. A existires-me antes do sol. Entre dentadas de pão e goles de café com leite. Acho que gosto do micro-ondas por me acompanhar manhãs e madrugadas com o mesmo calor entusiasta. Sim. Que, se me levanto às três ou às quatro, o cerimonial idêntico. Depois fico um nadinha meio tonta, a mão na persiana, a olhar a rua que não é ela ainda e aos poucos se vai vestindo de si. E passam vidas dentro de carros que são relâmpagos apressados no escuro da janela, gente que talvez não encontre no dia que começa senão muitas horas e minutos de atravessar. E fico-lhes com pena do cedo, de, quem sabe, se apressarem em casa sem um tempo de acordar. Mas em mim há certeza de estar viva e de o dia a romper. Então, volto ao pequeno-almoço, sento-me de novo, afasto a chávena e puxo o copo com o sumo; passo um invariável dedo nas gotas que cristalizam no cálice a boiar amarelos e admiro-lhe as linhas que me cativaram na escolha. Tão bonito, beber por ele a manhã! E atento no sem vontade da compota, a escorrer da colher para o pão, espessa, em pingos grossos de açúcar que ferveu brandamente, misturado com os pedaços de fruta; uma brandura apurada em minutos e horas de fogão. E gosto de pensar que ela nos guarda no sabor, na textura, no cheiro. Estamos os três dentro do frasco, eu, o açúcar e a fruta.

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