quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Hannah Arendt

Hannah Arendt é uma figura ímpar do século XX, um ser humano raro. Porquê? Porque sim. E sim é ter lido três dos seus livros, a saborear-lhe o entendimento de todas as coisas e das pessoas. Verdade, a inteligência tem paladar. Pouco sei da sua vida, por não ter hábito de ler contracapas. Quando vi o anúncio de um filme biográfico sobre esta mulher que admiro, marquei-lhe data – a próxima que me deslocasse a Lisboa. E foi hoje.
            Animada por tal brisa, entrei num centro comercial à hora de almoço e o enjoativo de fritos invadiu-me por inteiro. No completo de mim. Era uma misturada de fast food que se debatia no ar, sou eu que pairo, sou eu, sou eu. E logo um outro a sobrepor, não, não, eu sou mais forte, tenho caril, cebola…E um terceiro a empurrar os dois, nem pensar este é o meu reino. Fora! E idem, idem. A agoniar-me. Mas as gentes sentadas no barulho, olfacto habituado a lutas aéreas, mastigando. Ou só olhos mortiços, em observação de movimentos e passagens. A ilusão de viver que emprestam a pressa e a vida dos outros! Não será bem assim. É mais uma saudade que os encontra sem densidade e irrompe por eles dentro se um parzinho de mão dada a conversar entendimentos; ou se cruzam olhos inquietos, que esquadrinham o espaço até ao alisar  descontraído e expressivo. Encontrou. E, nos seus olhos de presente inábil, passa uma espécie de inveja do futuro que já não sentem e existe – pensam -  em quem transita.  Que só o entendimento procria futuros.
A essa hora, perfumadas e blazées, as mulheres enxameavam. Mas a omnipotência do cheiro. Armado de rudeza, engolia sem complacências odores fortes de Chanel e Givanchy, a ofendê-los no âmago, que mixórdia é esta? Retirem-me da cloaca, por favor. E as águas de colónia a desfalecer fraquezas, desisto.
Perseverante e razoavelmente agoniada – tenho quase sempre que peregrinar para obter -  aguentei uma fila comprida a lagartar por entre a rixa de odores que nessa altura já me pareciam a ranço. Cansada e contente. Futurava estar bem sentada duas horas, imersa num assunto de filme. Bem-disposta. A descansar de ser mim. O cinema obriga a pausar o quotidiano; ser ninguém,  esquecendo que somos alguém. Ali, somos filme.
Desilusão. O filme não tem chama. Ou não me chamou. Cinge-se à posição humanista de Hannah Arendt no julgamento de um nazi e às consequências drásticas dessa posição, defendida num jornal americano. Hannah incompatibilizou-se com as chefias do movimento sionista por lhes apontar culpa na defesa dos judeus deportados para os campos de concentração. E a sua maior coragem foi sacudir as consciências desde o interior e apontar o réu como uma despersonalidade, alguém que perdeu a capacidade de pensar, delegada num führer. Mas todos esperavam uma violenta condenação - ela mesma fugira de um desses campos -, os adjectivos em catadupa, pedradas de enterro fundo.  “Hannah Arendt” é um filme sobre o perigo de tocar a verdade com as mãos. E do quanto os outros não nos gostam por nós mesmos, mas por julgarem que comungamos dos seus ideais e preconceitos. A luta contra a subjectividade da opinião. E a vitória do pensamento crítico. Filosófico.
No entanto, e apesar da fita tentar apresentar uma Hannah Arendt muito humana, ela falta. Há ali uma inveterada fumadora, a pensadora, a mulher dedicada aos amigos mais antigos, a excelente professora. O trabalho da actriz é notável na oralidade conseguida. Mas a Hannah Arendt dos livros que li, apesar de algumas frases e conversas textuais, não apareceu. Em compensação, Mary, a amiga, é bem mais avassaladora e empática. Há no filme uma racionalização das relações amorosas que não esbate nos beijos trocados. E o encontro com Heidegger não pode ter sido aquele amor quase nada, que ali  é  apenas aflorado e semelha mais uma paixão de velho a que a aluna corresponde com admiração e complacência.  E que joga mal com a afirmação de que o seu inexplicável foi Heidegger.
De todo o filme, gostei de uma frase que me faz sorrir, por ser a que menos tem a ver com Hannah. Depois da doença, dão uma festa em casa que reúne de novo os amigos dos serões antigos. Para comemorar. E quando saiu toda a gente Heinrich diz algo semelhante a, “como me cansou comemorar a minha saúde!”.
Num filme filosófico, não me parece bem lembrar-me só desta frase. Reconhecer-lhe razão, em identidade subjectiva. No finalmente das festas, sou ele. O que seja que se comemore.
Está decidido, vou ler mais uns livritos de Hannah Arendt. Mais vale.






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