quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Todos os homens preferem. E é na gradação das preferências que se instala o interesse de viver. Algumas preferências surgem naturalmente, outras são modificações do gosto. Mas aquilo que se prefere orienta-nos o agir mais livre. Uma das preferências do meu pai era encostar-se ao balcão da taberna e ir ficando. Algumas vezes, depois de muitos copos bebidos em rodada, um tendeiro ou caixeiro-viajante que tentasse a sorte, depois de muito moer, conseguia interessá-lo numa compra. Conhecendo o meu progenitor e o seu apego ao dinheiro, sei que devia arrepender-se mal estivesse nele, que podia não ser no dia seguinte nem no seguinte do seguinte, mas jamais lhe ouvi uma palavra sobre, um eco que fosse. Etilicamente, comprou um burro, duas cabras, um corte inteiro de tecido castanho que nos vestiu a todos e nunca mais acabava, um gabão e duas latas de quilo de atum Bom Petisco, de uma pureza que nunca tínhamos visto ou sentido e que nos deliciaram. Numa dessas noitadas, encontrou um pintor de azulejo e escaqueirou o velho sonho com auréola da minha mãe, o desejo de, sobre a porta, “Vivenda S. José”, em ferro forjado. Copo para cá e para lá com o pintor e mandou fazer o painel que ora existe e onde se lê Vivenda Pinto e um pinto escarrapachado, que o fulano era artista e tinha de deixar a marca. A minha mãe a observar sem palavras, numa tristura de dar dó, as pálpebras a engrossar; e o meu pai a defender-se, eu não mandei fazer o pinto, ele é que lá o pôs.
Teria eu uns doze anos, uma noite de copos pariu um rádio minúsculo. Apesar de pouco maior que uma caixa de fósforos, delirámos com a máquina. A princípio desiludi, queria um rádio como o dos meus avós. Mas depressa aprendemos a mexer na engenhoca e a perfilhámos. O nosso não era igual a nenhum, ninguém tinha coisa tão pequena. A minha irmã fazia gala no aparelho e exibia-o a todas as garotas que fossem lá a casa. Um sucesso. Entretanto, o sovina do meu pai proibia-nos de ouvir rádio durante o dia, para não gastarmos as pilhas. As sessões nocturnas começavam após o jantar com o meu chamado, mãe, olhe o romance. E ficávamos em roda do diamante que debitava frases interessantes e anormais para nós. Ouvimos vários folhetins, mas só recordo “A vida aventurosa de Wagner” e lembro-me de ter alguma má vontade ao compositor por tratar mal a mulher; e de adorar toda aquela música  muito alta e cheia de força que ainda hoje me sugere glórias militares. Também ouvíamos “Quando o telefone toca”, que nos servia de jogo, a adivinharmos o pedido seguinte; quem acertava mais vezes, ganhava. Todas as noites, mal começava a Melodia do Desespero, a minha mãe, mudem lá isso que o homem me faz impressão. É muita tristeza, o que será que ele diz? Até parece que chora. E eu ouvia hóquei em patins, vício que passei aos garotos e durou até eu mesma comprar um televisor e desinteressar do hóquei visual. De cada vez que precisávamos de pilhas novas o meu pai “fazia uma pregação”, é gaiatas desgraçadas! De certeza que deixam o botão ligado, gastam as pilhas em menos de nada.
Uma noite, talvez por excesso de uso, o rádio não tocou - o meu pai garantia amiúde, com alguns epítetos à mistura, que quem lho vendeu o tinha roubado; portanto, seria muito velho. Rodávamos o botão e uma rugida queixosa. E apenas. Somente. Trocámos as pilhas, abanámos, pusemos no máximo, no mínimo, mudámos de posto para posto, fomos ouvir na outra cozinha, nos quartos, na sala… Nada. Ficámos calados a engolir a vontade de chorar, a casa a admirar de silêncio, alumiada pelo candeeiro de petróleo que entristecia vapores amarelos. A minha mãe a olhar-nos, dêem-mo cá. Agarrou nele, abriu-o, palpou e,  oh, está tão frio, e colocou-o no chão, a centímetros da lareira. Então, começámos a ouvir vozes longínquas e progressivas, que em breve chegaram à tonalidade normal, mais pareciam pessoas que viessem a pé para nossa casa. A partir dessa noite, o rádio precisou sempre de cinco minutos de aquecimento que cresceram na proporção dos desmaios. Perdia vigor a cada noite, e, ao longo dos meses, as vozes a enfraquecer. Um dia, finou. Que é como quem diz, derreteu. O meu irmão aflito com o cheiro, os homens tão todos queimadinhos, mana.
Entretanto, o nosso rádio gozava a tempo certo, um mês de descanso. Sempre que o meu avô vinha para nossa casa, trazia o rádio dele e logo o punha sobre a mesa. Era uma alegria. O meu avô tinha uma reforma de miséria mas não queria saber se o usávamos dia ou noite, em sua casa o rádio ligado era quase permanente. Se as pilhas enfraqueciam, dava-nos dinheiro para outras. 
Foi por essa altura que comecei a passar a letra das canções que me agradavam mais. O meu avô ria baixo e gostava de me ouvir a experimentar o que tinha aprendido e se ia a correr de cada vez que dava a canção que queria copiar. Os meus irmãos solidarizavam e se não estava próxima, também gritavam, Beatriz, tá a dar aquela canção que andas a copiar. E a mais velha, queres que eu te passe um bocado? Onde é que tens o papel?

Por vezes, o meu avô com olhos de mel, o avô dá-te o rádio quando morrer. Eu a abraçá-lo, o avô não morre, tá bem? Ele, tá bem. E eu descansava.

Sem comentários:

Enviar um comentário