quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Um Amor Pequeno

Os povos são todos diferentes, dizemos. Mas as pessoas tão iguais! A situação económica e a pertença de classe aproximam continentes distantes e emparelham comportamentos. Quando estive no Brasil, viajei de táxi - bem lentamente - entre o hotel e o aeroporto, os olhos a despedirem-se em tempo útil. E senti-me replantada na minha aldeia. O Táxi passava devagar pelos lugares e a mesma caterva de sombras e pobreza nos adereços, nas casas, nas pessoas. Escurecia. As portas escancaradas à brisa. No interior, os candeeiros de petróleo a bruxulear claridades, enxameados de insectos que circundavam a morte em sua dança cega; mulheres descalças ou a chinelar, entrevistas em lida caseira, sem a graça que as revistas e as actrizes emprestam ao feminino brasileiro, morenas, gordas, pesadas; talvez suadas. As tabernas vozeavam e o suor brilhante do álcool já acetinava braços, rostos graníticos riscados de vincos fundos, troncos meio dobrados para a frente, talvez sobre um copo, ou apenas sobre si mesmos, em fase introspectiva de bebedeira; Como num quadro, as pernas penumbravam informes mas, grande parte dos olhos encimava camisolas de alças, um viés para o canto onde uma televisão junto ao tecto. E, na maioria das aldeias, havia talvez um café, onde mulheres e crianças hipnotizavam, ordeiras, em bancos corridos a toda a largura da sala, a televisão ligada à bateria de um automóvel ou a um gerador que resfolegava canseiras no bafo escuro da noite. Podia ser a minha aldeia no quando dos inícios da TV. Que a minha mãe nunca viu e pouco me autorizou a participar. Daí que, lá em casa, nada destronasse o rádio.
Aos dezassete anos, fui estudar para a cidade, só regressada à quinzena. As viagens eram caras e o meu pai ditou lei. Por contingências alheias à vontade do clã, o meu avô, que começara por ficar com o meu primo em nossa casa, passou a andar em casa dos filhos. Mais tarde, adoeci e a determinada altura o médico internou-me. Felizmente alguém atendeu o meu pedido de transferência para um lugar onde pudesse estender a mão e tocar alguma visita que me chegasse, assistir o sol a nascer, usar a minha roupa, os meus sapatos, andar, correr, ver gente. Portanto, mudei de hospital. Na madrugada da mudança, o meu pai chegou preocupado e insone, um saco  colado à mão que só me passou na despedida, a voz a falhar-lhe, Toma, mandou o avô. Deu-me um beijo rápido e partiu em pressas embaraçadas de preocupação mal embrulhada na ternura triste que não sabia nem ousava mostrar mas sei que houve. A situação era tão nova que não abri o saco e fiquei embasbacada à porta, alguém a levar-me as malas, as costas do meu pai na ambulância a sumir além-portão. Quando, já noitinha, olhei o saco, o rádio refulgia lá dentro. Exultei e dei-lhe o uso que merecia.
Levei meses para regressar a casa. E quando cheguei e o meu avô uma visita, logo lhe ralhei. Ele, “tu gostas muito de ouvir música, o avô quer que fiques com ele e o leves lá para onde vais; é um gosto meu, neta. Já me tiraram tudo, só tenho a telefonia. É tua, minha neta”. E como era jovem e pateta, desatei a chorar e abracei-o, gosto muito de si, gosto muito de si, avô gosto tanto de si. E depois, avô e agora o que põe em cima da mesa-de-cabeceira? E ele, o teu retrato. - e num sorriso - Anda comigo na casa dos filhos. Vai lá ver. E lá estávamos os dois sobre a mesa-de-cabeceira eu de lenço na cabeça feita cigana e o meu avô de barrete de orelhas, cajado na mão, sentadinho na sua cadeira. Não me lembro do fotógrafo. Mais tarde, quando já não servia ninguém, os meus tios enviaram-ma ainda na moldura que lhe oferecera. E lá estamos nós dois a sumir, quase indistinguíveis na brancura amarelada daquela esquina de sol.
A “telefonia do avô” acompanhou-me a vida errante de professora primária agregada e efectiva. E todas as férias voltava à aldeia, ainda sem luz eléctrica. Nela aprendi as poucas canções que sei cantar.

Ora, objecto como outro qualquer, não se subtraiu às leis do tempo e foi adoecendo. Começou a engripar, a tossir, abriu em intermitências vocais, soluçava que só visto; e o Rádio Graça empreendeu em rugidos de leão entusiasta que não desapareceram. Perante tanta birra, as férias eram menos alegres. E deu-nos cabo dos rituais: pintar paredes ao som de música era outra categoria; serões sem Telefone Toca, perdiam encanto; não conseguíamos acompanhar os jogos de hóquei e torcer pela selecção. Estávamos pelos cabelos com tanto impedimento. Por isso, sem coragem de a deitar fora ainda que sem préstimo, guardei-a no sótão. Sem me lembrar de a embrulhar. 

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