segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pré-História de um Amor


Todas as pessoas se armam contra a solidão. Mesmo as que dizem que não se sentem sós. Também elas. Porque, ou mentem, ou não sabem ainda concretizá-la. Identificam-na, talvez, com uma falta de companhia. E não estão erradas. A solidão é um estado de alma que não depende necessariamente da presença de um ser físico, mas essencialmente da falta de um estado de companhia. O que as pessoas mais sós ignoram é que as companhias desse tal estado não se compram ou se trocam; não têm a ver com risos e gargalhadas, ainda que possam existir; viram costas a muita conversa e solicitude baratas. A companhia só existe se haja uma relação profunda entre o acompanhado e o acompanhante. Dizem-me, ah, e então as companhias de viagem, aqueles seres empáticos a quem contamos mundos e fundos que não abrimos para conhecidos? Respondo que a fugacidade desses encontros não chega até à solidão. Somos um compartimento desenhado a todo o comprimento e eles são lâmpada de entrada, não contam para a luz da sala. Ajudam sobretudo na visibilidade da porta. O estado de companhia forma-se em anos de sedimentação. Como as rochas. Existe com grandes amigos, grandes amores e outras pessoas sem as quais o núcleo nos surge incompleto, haja ou não laços de sangue. Mas também com os animais. E os objectos. Sim.
“Na adolescência é suposto começarmos os amores”, quando li isto num livro preocupei e fui informar-me sobre a duração da adolescência. E constatei ser meio anormal, durante tal período da vida não me passou pela cabeça gostar de nenhum rapaz (nesse tempo desimaginava que a homossexualidade existisse). Nem me lembrei que a amizade também é um amor. E que, além das minhas amigas, desenvolvera um certo amor por alguns objectos, alheada do mundo animal.
A minha história com os animais é um bocado vergonhosa. Temia-os e enojavam-me um tanto. E não me refiro à infância. Se a minha mãe me punha nas mãos a galinha que chocava, pegava-lhe nas asas com as pontas dos dedos a afastá-la do corpo quanto podia. O passo seguinte era a queda do galináceo, a mãe sem gritar, um tudo nada de acidez, como é que não seguras uma galinha choca que nem se mexe, apanha-a lá, vá. E, face à minha recusa e inépcia, não sou capaz, apanhava-a do chão onde estava engolfada em novelo e voltava a pôr-ma nas mãos, a apertar-me os dedos sobre as asas, Beatriz agarra bem a galinha senão ainda apanhas tu. E eu, olhos fechados, a fazer força nas penas e a sentir sob os dedos a carne morna e febril que me torcia os lábios, o veio grosso das penas como um pequeno tronco, mãe isto do meio das penas é madeira? A mãe, segura o animal Beatriz, estás a deixá-la cair. Está à vista que as galinhas não me serviam as ternuras.
 Do cão tinha pavor, um medo gigante se rebentava a corrente. Se acontecia ouvir-lhe os latidos fora de sítio e me encontrava na rua, estacava e mais ou menos a chorar, ó mãe! o cão tá à solta, Ele ouvia-me, desatava a correr na minha direcção, punha-me as patas nos ombros e derrubava-me de alegria. Eu ficava no chão a chorar e aos gritos de, ó mãe, tenho medo do cão, venha cá, mas sem me mexer, ainda assim ele não se renovasse nos cumprimentos. O pobre animal ficava um bocado a olhar-me e a abanar a cauda, as patas fincadas no chão a parecerem pés de mesa e as unhas que, não sei como, me lembravam garras de águia, ave nunca vista, a enormizarem. Entretanto, a minha mãe acorria em presteza silente e ele desabria para o lado oposto. E só aí começava a levantar-me cheia de pó, ranho e queixas. 
O restante séquito de quatro patas não ia mais longe. Os nossos gatos pretos, pequenos seres de rua que por vezes devinham selvagens à força de incursões solitárias pelo montado, desinteressavam-me. Do burro tinha um medo feroz e jamais me aproximei do coitado. Muito adolescente e mais palerma, à conta da gulodice de uma cabra levei umas chapadas bem dadas, uma sova. Foi a última vez que a minha mãe bateu num filho. Os meus irmãos, ai, ai, deixaste fugir a cabra; tira-a da oliveira, olha que a mãe bate-te. E eu a metros do animal, a abanar muito os braços, xô, cabra! Sai. sai. Mas a cabra fixada na oliveira. Com os dentes. A roer, a roer, a roer. A minha impotência queixosa, ela não sai. E a oliveirita a desaparecer nas beiças daquela imbecil mal mandada. Os meus irmãos com boquinha redonda, Ai deixa, a cabra comeu a oliveira toda! E a mãe já vem aqui a chegar. Agora apanhas. A minha mãe a subir penosamente com o burro, rosto impenetrável. A rumar ao estábulo e a minha mente, talvez não me bata. Espectáculo! Só a cabra é que gostou.
 Os porcos cheiravam muito mal para o meu gosto e, se pudesse, nem proximidades. Quanto aos coelhos, comiam demais. E cheiravam a coelho. A minha tia a olhá-los embevecida,  animaizinhos tão bonitos. E eu muito séria a ponderar a vida da coelheira, ó tia os olhos deles são palermas, olham tudo igual, a dar-lhes as costas num remate, Os coelhos são parvos.

Portanto, restavam-me os objectos. Deve ter sido assim que comecei a gostá-los. Fazia-me falta vê-los, tocar-lhes, usá-los. Eram companhia silenciosa e quieta, não tinham aquele cheiro de bicho e estavam sempre em algum lugar. O rádio foi o primeiro que me deveio próximo.

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