sábado, 26 de abril de 2014

A Liberdade Passou Por Aqui

Hoje, acordei para ti. Hoje és a minha liberdade livre, o meu reencontro com alguém de mim que dorme tempo demais. Hoje sou o cesto vazio que vais encher de flores pelo dia. Pegas nos meus gestos pelo caule, delicadeza que me estremece; e sei que há-de haver um momento em que a tua voz modula umas notas só para mim e o corpo ondulado do som cheira a acenos de malmequer. Mas hoje somos mais. Talvez. Eu mais quieta e extasiada do que sempre, tu no piano, ouve esta. As minhas mãos paradas no tricot e o que deve ser um eu escondido, a ajoelhar em gratidão pura. Tão bonito o teu canto do século XIX! Tão bonita a voz em difíceis torneados de mobília, a espraiar queixas de romantismos funestos, estranguladas tristezas de amor, súbitas decisões de eternidade... nesse infinito momento, perdemos o pé da realidade e habitamos a originária perfeição do tempo, sem onde ou como.
Quem sabe, errámos o século de nascer.
Depois, pões o canto de Pedro na Paixão, arrependimento que me fascina doentiamente; e descobres que sintonizamos naquele tenor espanhol, Carlos Mena, que afinal coleccionas. Há qualquer tragédia no híbrido da voz que toda me move por dentro, uma amplidão de sentimento condensado a atravessar-me como lança. E desamparo sem densidade, vaga de mim.
 Então,  a tua elegância nota - como se o não notasse - o meu estar de precipício e traz outro gosto nosso: António Zambujo e a sua mescla particular na dolência alentejana, uma espécie de desejo triste e quente que lhe cresce e fica a pairar no vagar das sílabas. Deixamo-nos ir no calor parado da planície, sereno fatalismo da solidão. Enfim, recomeçamos. Quotidianas e diurnas, que o tempo comum nos foge e cada encontro é breve fósforo de alegria.

O que eu gosto de tu haveres, Luisinha!

2 comentários:

  1. Bem...bem... que posso dizer? Só agradecer.
    Aprecio o teu maravilhoso dom de saber falar das coisas que apenas ditas ganham forma. Cada vez que te leio, pergunto-me como é que não partilhas a tua escrita fora deste blogue quase secreto...

    Resta-me agradecer.

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