sábado, 3 de maio de 2014

Suave e Murmurado

Lembras-te? Foi há mais de quarenta anos e Évora parece ainda tão próxima. As muralhas, o jardim frente à Rodoviária e onde não passeámos, as ruas de paralelos difíceis, que tanto custavam a subir. Solitárias, íamos da antiga estação de camionagem até à outra ponta da cidade, ajoujadas sob a mala carregada de sucata, coração num susto de saudade. E a praça do Giraldo que não tinha fim, arcos sobre arcos, nós a marcar paragens em solilóquio, aguento até ali sem descansar, e agora tem de ser até ali. E os arcos inesgotáveis, em catadupa de pesadelo; nós desesperadas, a suster a vontade de abrir a mala e atirar fora metade do conteúdo que todo nos era necessário. Nessas noites de domingo, tardava-nos o longitudinal da rua onde vivíamos e que, mal lhe púnhamos o pé, se mudava em desesperante elástico; até hoje, e acredita que já andei bastante, nenhuma rua se me encompridou assim. Lá bem ao fundo, frente ao Jardim das Canas, e junto a uma das portas da cidade, alvejava o Convento Novo, destino de mole compacta e bruta, cortada pelo grotesco breve de janelas gradeadas rasando o tecto.
Por vezes, a porteira, menina Bia de sua graça, descia à rua e ajudava a carregar as malas escada acima até à soleira da portinha pequena, entreaberta na enormidade da porta principal que só ressuscitava ao domingo para a missa das onze ou por visita importante. Depois, tomava balanço e levava-as claustros fora, até à escada para o primeiro andar, “dizem que, depois da meia-noite, a irmã morta aparece aqui no primeiro patamar”. Não era verdade. Uma vez faltou a luz e eu estudava ainda no nosso quartinho junto à clausura. Tinha um ponto de Psicologia e gostava – toda a gente – do Serpa Branco a quem tratávamos carinhosamente por, “o Serpinha”. E resolvi descer a escada na hipótese de poder estudar ao luar, no claustro. Já passava da meia-noite e não encontrei um mero suspiro, uma luzinha a alumiar o imponente tenebroso da escadaria. Nada. Tão pouco consegui ler à luz da lua.
 Na Casa Pia éramos quatro aspirantes a professoras. Mas foi contigo que mais sintonizei. Ainda sintonizo. Não tínhamos história semelhante, mas éramos similares na nudez da pobreza. Quem não lhe vestiu o ser não nos entende; nem compreende a nossa estranha aliança. Toda a gente era pobre nesse tempo? Falso. A pobreza toma-nos, não há modo de apagá-la. É um sistema de vida, e tudo que se ganha e transforma é lenha insuficiente para consumi-lo. Transpor uma condição social. Se acontece, fica-nos o estigma às ferroadas na alma. A condicionar escolhas e momentos de escolher. Não. Os pobres nunca foram mais livres. Quem é subordinado à obediência por criação pode até revoltar-se, mas continua a obedecer. Quem sabe se não descendemos as duas desses escravos que assolaram Portugal depois dos descobrimentos. Ou dos servos da gleba que se vendiam adstritos à terra, propriedade de outros homens. Até o orgulho é em nós uma revolta a desfavor.
Contudo, hoje, nós umas matronas. Falta-nos a magreza ágil de animal alentejano comido de gorduras, só alimentado a sonho de futuro ainda sem idade. Mas conservámos alma e olhos de infinito. E que o tempo tarde a engolir tais benesses! Lembro a nitidez recortada do teu perfil moreno, o jeito de levantares a cabeça se nos olhavas; a tua boca de Amália onde um pincel de mestre se deitou a desenhar o lábio superior, lábio inferior cheio e ligeiramente amassado no centro; os olhos de planície entre a tristeza natural e a subtileza irónica; o nariz grego a fazer pendant com a linha estreita do queixo; a discrição do rabo-de-cavalo que amarravas na nuca. Quase não tenho memória do teu cabelo solto, talvez na bênção das pastas. Seguramente, na fotografia que me deste e guardo num álbum. Assentavam-te esbeltas blusas escuras de gola alta e jamais te vi pintada ou enfeitada garridamente. E, sobre todas as coisas, a tua voz. Reinando. Diurna. A arrastar-se em requebros maviosos de Alentejo profundo.  
E podes até já nem ser esta, mas é ela que eu procuro e encontro. E é assim que te vejo sempre e me existes. Foi contigo que estive três voadoras horas ao fogão. A querer levar-me. Amizade. É só o que vou contar.

(continua)

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