quinta-feira, 8 de maio de 2014

Suave e Murmurado

(continuação)
Ontem à noite telefonaste inesperada, que podia ser hoje, podia ir ver-te. Apesar dos protestos, imediatamente te disse que sim e desculpei a tua lonjura de anos e falta de iniciativa, o teu silêncio sem motivo (não ligaste, como prometido, no dia seguinte à minha proposta de visita; encerraste em torre incomunicável, as pontes de voz içadas). Só a ideia de te visitar já me é grata. Verdade. Porém, a falta do sol deslaça-me. Apanhaste pois o imprestável de mim, as minhas vírgulas sem palavras, séries de dois pontos parágrafo na outra linha travessão e nenhuma letra, reticências inúmeras a invadirem-me as certezas diurnas. Enfim, durante a noite sou um acérrimo de pontuação sem o que lhe dá sentido, o discurso. Imagino que, porque me vou calando, ela tenha o seu recreio e ande livre por mim fora. Dos meus dedos soltam-se às vezes pontos em interrogação persistente, tão incómodos como a chuvinha de Maio, e já dei por uma exclamação a entupir-me um ouvido. Portanto, não me ligues no tarde da noite que tenho a criação à solta (quem dera fosse a criatividade) e não sei de mim. Limitei-me, pois,  a uma rasura de solilóquio, amanhã levanto-me cedo e penso no almoço. E adormeci.
Acordei já ligada à tomada. Sem tempo para compras, cingi-me ao que tinha em stoque, esperançada no teu gosto, bacalhau. Mas desejava-nos uma refeição inteira, um bordado com cercadura à volta, diria a minha avó. Portanto, enquanto tratava do peixe – quando era garota o bacalhau ocupava-me uma categoria intermédia entre a carne e o peixe; a minha mãe teve de discursar longamente acerca de variedades de peixe para me convencer -  descasquei as tubras/túberas, fritei-as e mexi-as com ovos. Imaginei um bacalhau em bechamel com batata, espinafres, camarão e cebola; fiz salada, pus um vinho branco e uma seven up  a refrescar, ( tenho de estragar o vinho para bebê-lo). E fiz o bolo mais simples que sei, pão-de-ló baixinho e húmido de que toda a gente gosta. E as horas voaram. Como já te disse atrás, estivemos as duas cirandando pela cozinha (nós). Embrulhei as refeições quentes em jornais, tirei o vinho, a salada e a fruta a arrumei no saco térmico, colhi-te rosas do meu jardim. Carreguei o bolo, a cesta, o saco térmico e as flores para o carro. E fui andando. Contente por irmos almoçar juntas em tua casa, na tua camilha. Esqueci-me de me pentear, mas és como eu, não reparas em pormenores.
Na Primavera, o Alentejo apetece. Chama por nós num canto seráfico dobrado de verde e azul. Fora do cansaço do Verão, a copa dos sobreiros pregada no céu, penteada, a vicejar frescuras que não existem, arredada de manso por uma brisa de algodão, inclina cortesias a quem passa; as árvores primaveris ainda não desgrenharam a sua angústia de sol e a cortiça protege-lhes a palidez confrangida da pele. As cegonhas, ocupadas em ser domésticas, são mães pernaltas, em atenção bicuda a ovos e ninho; quando o verão chegar, a sua silhueta airosa, imóvel, há-de recortar-se no azul, lá bem no alto, a perscrutar horizontes. As cegonhas de pose delicada são as bailarinas do Verão. Hoje, a terra soalheira reverdece. Renasceu, talvez – sejamos infantis, egocêntricas – para nós. A mesma terra que vai gretar à míngua, no rigor do estio, é agora una, compacta, um manto de vegetação rasteira a colar-se-lhe à pele dos grãos ainda castanhos e férteis. O Alentejo, apesar do nome masculino, é fêmea e lembra a Primavera de Botticelli, aquela adolescente grávida, todo o corpo a abrir em flor, que admirei, perdida de mim, na Galeria dos Ofícios. E que a mão humana consiga, antes de 1500, uma tal precisa e preciosa beleza, é espantoso.
Vou cortando a Primavera ao natural, quilómetro a quilómetro, contente da visão remoçada, colinas de cor em pincelada curta. Cada flor, um ponto. Fofo colorido onde apetece rebolar. Penso, se parasse o carro, fosse até lá e me atirasse sem olhar?! Apenas. Mas logo imagino as florinhas esmagadas, ui que dor tão forte, bati com a cabeça numa pedra; ou, corolas rente ao chão, não consigo respirar, tenho a boca cheia de terra; ou ainda, as mais abespinhadas, isto aleija, já tenho um botão escangalhado e partiram-me um braço, ora esta. Desisto, as marcas dos passos e do corpo na colina fariam muito estrago. Sem contar que existem animais que me enojam, lagartos, cobras e outros bichos que se arrastem. Podia atirar-me e eles ali; garanto que não gostaria de os sentir a mexer, incomodados.
A estrada é uma recta infindável, que se acrescenta e acrescenta. Ideal à gratidão dos olhos. Que sorte haver as estações do ano sem quebras, o tempo a fluir. Abençoado Deus ou Propósito de repetir a natureza em continuum. Façam os homens o que façam, ela repete o ciclo. Alheia a dores e alegrias, asperezas ou suavidades. Indiferente aos humanos. Perpetua-se. Somos nós, os seres mais mutáveis do universo conhecido, a desejar a permanência, a constância, a eternidade de que nada sabemos e pode mesmo ser um conceito vazio. Oh, a tragédia de existir a pensar noutra coisa!
Depois, de Évora até Reguengos, nova estrada plana, a perder de vista na linha de horizonte, tão rasa que mais parecemos imergir no azul. E Reguengos, em sua pacatez lírica de província. Um magote de casas na planície, que vai ficando maior e maior, e depois já tem ruas e semáforos e gente. Sigo até à igreja magnificente e com barras, frescura de silêncio onde um dia descansei calores e balbúrdia de alunos. Ladeio-a na pressa que trago de ti. Bom, também do nosso almoço. Breve me surge a placa, S. Pedro do Corval. Sigo o último trilho. Já na aldeia, paro numa olaria e confirmo o endereço. Todos te conhecem.

Enfim, chego. Ainda encosto o carro e já tu, no de sempre, assomas ao quintal. Alentejanamente. E upaaaa! Um abraço sem roda. Não há coisa mais bonita. Não há.

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