segunda-feira, 12 de maio de 2014

Suave e Murmurado

(continuação)
O sol do Alentejo invade todos os escaninhos, espreita todas as frestas. Desimportado, interpõe-se no abraço a deslaçar e mostra-nos uma à outra. Sorrimos ao espelho. Oito anos. A mudança dos cinquenta para os sessenta. E tanta, santo Deus. A partir dos sessenta é irrecusável, a pele cansa-se de ser jovem e cria um amolentado que se tacteia com agrado – a minha mão mapa de tempo a descer-te o rosto e a recordar a vitalidade de um rabo de cavalo –,  espécie de papel fino que ganha sinais do que viveste. A polpa dos dedos alisa o cansaço dos esforços em que te suplantaste, o pragmatismo de que lançaste mão para sair dos buracos negros que te couberam, os amigos que te recusaram ou tu afastaste, os teus pequenos-grandes vícios, as noites de insónia, os amores que perdeste porque na altura não os julgaste importantes, outros viriam.  Tudo fica cruzado na pele, finamente, por vezes em arabescos tão repetidos que quase constitui um padrão. Porém, mais nos delatam os olhos. Porque, se não foi fortuito, dizem do bem que te quiseram. Está-te nos olhos se o fruíste e usufruíste. Ganhas uma doçura resistente, profunda. Que te contém a infância e adolescência e as vai semeando pela vida – tua e dos outros.  Observo-te, estás um pouco alegre. Talvez saudosa.  Dou-te as flores que vais pôr em água e entro em casa com a tralha. E tu ajudas pressurosa,  restinhos da garota de Évora a evaporar na claridade.  
A casa recebe-nos no sossego que conheço. A mesma. Tudo no sítio. Menos a tua irmã. Não falamos dela. Contudo, o lugar vago alastra,  borrão de tinta em água. Afloro o nome recordando a última visita. Não o tocas. Pomos a mesa a meias e aceito pratos e talheres de plástico – se soubera teria trazido os meus –, mas faço questão num cálice de vidro. Tinha pensado que iríamos brindar ao próximo encontro, mas, à vista da garrafa do vinho, vais avisando um padecimento de vesícula e de uma penada o suprimes e às entradas. Em oito anos, muito acontecer calaste! Sirvo-te e sirvo-me.  Almoçamos, tu, medrosa da doença, a comentares o picante dos camarões. Comeste pouco e não repetiste. Também não brindámos. Mas pareceu-me que gostaste do pão-de-ló que  leva ovos e, incompreensivelmente, comeste e até repetiste.
 Depois do almoço, pratos e talheres descartáveis, arrumo as minhas coisas e ajudo-te na mesa. Em seguida, entramos de conversar. Sugiro-te o computador, pode ajudar-te as noites e será melhor que a prisão da TV; que posso enviar-te algumas coisas interessantes. Mostras-me um computador virgem, a reluzir saudade de dedos. Tento convencer-te a visitar uma casa de informática para a instalação de alguns programas, mas receio que quando volte a tua casa, ele numa queixa, exaurido de saudade, morro se não me tocam. Então, abro o meu pc e mostro-te o que posso – não tens acesso à internet – fotos de família que gostas de ver, coisas palermas que escrevi e acho bem dispostas…encantas nas minhas fotos da Bélgica e no relato pormenorizado a apontar, a apontar. Lamento não ter trazido as da Toscana. Na próxima vez. Prometo. Assim eu possa guiar-te os olhos por campos casados em veludo verde e amarelo, colunas de ciprestes e tanto mais. Não há verdes como os da Toscana. Como hás-de notar.
São já as dezassete. Para terminar, passeio contigo.  Vamos até à barragem da Amieira (ou será a marina?). Não há como conduzir no Alentejo. Olho-te o perfil contente. Tão maluca quanto eu, perplexas neste enlevo colorido. As nossas almas agradecidas flutuam gémeas na paisagem. Lindos estes teus campos e recantos. Colinas de tons quentes, íman dos olhos, tinta entornada que não ouso fotografar.
Chegadas à marina da Amieira, tiramos uma foto as duas e eu aproveito a paisagem. Bebo uma água que tu pagas e sentamo-nos na esplanada. Duas burguesas de meia-idade à sombra quente do Alentejo. No meio de outra gente encalorada, possivelmente com um barco na marina, que nos mira em jeito de quem conhece o território, a estranhar-nos, estas duas de onde saíram, o que querem. Desabafo para os barcos, aqui, só a sombra interior das casas é fresca. E eles a oscilarem um tudo-nada, sim, sim.
Acode-me à memória o Verão na minha aldeia pequena, cegonhas estáticas, asas escancaradas no inferno azul do ar. Olho em volta e nem um passarito pequeno. Afogueada, levanto a cabeça para a sombra alva do toldo. Como as sombras alentejanas são quentes, sufocadiças! Ficam a doer-nos na alma enquanto o suor empapa o corpo. Oh, castigadora ardência que infinitamente nos dobras, vincas, amarfanhas. Até neste dia de corolas invulgares, a espreitarem-nos de todo o sítio. Ai de nós, insidiosa Primavera.
Regressamos lentamente, olhos de esponja; eu, já a equilibrar tempo e quilómetros. Levo-te a casa, recolho o material e abraço-te com força porque gosto de ti e a gente nunca sabe.  Fica-me a insuficiência de sempre, o tempo que passamos juntas estreita demais, falta. E lanço-te o eterno apelo de um quarto independente com casa de banho privada que ninguém usa, vem a minha casa. Mas não virás. Sei.
Volto na tardinha, a tua mão no retrovisor a acenar-me. Olho-a a pensar nas mãos que me acenaram sem regresso. E fecho o pensamento  porque eu sei que se me concentrar nela, vou ter a certeza de regressar. Ou não. Em força de distracção, olho o jardim público, e aspiro golfadas de crepúsculo a arredar certezas, não vou mais deixá-las entrar. Não posso permitir que o tempo se me adiante.  Dobro uma esquina e desapareces. Vou andando, andando. Perco-me em Reguengos – acho que lhe dei uma volta completa antes de sair, além disso não passei na igreja matriz e devia. Volto a perder-me em Évora. Mas chego a casa. Outro mundo.

Tomo banho. Suor e poeira do dia escorregam em fios múltiplos enquanto arquivo na memória pormenores irrisórios, coisas pequenas e navegantes. Oh, o infinito espaço da memória. Mais tarde, alinhavo algumas ideias, combinámos um escrito sobre. Ainda releio, quem sabe altero, acrescento, elimino. Vou ter cuidados de ponto cruz quando junte tudo para ti. Prometo.
E Obrigada por me receberes em tua casa:).

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