quinta-feira, 22 de maio de 2014

Solilóquio

O dia de terça-feira é-me extenuante. Extenuo com facilidade, o corpo sempre propenso ao cansaço. Começo dentro da piscina, braços e pernas leves, a cumprir ordens. Quarenta minutos de obediência tépida a orientar-me a cabeça de pântano; pressuponho que, enquanto atento aos movimentos do tronco e membros adjacentes, em silêncio, sub-reptícia, ela se rearranja: enrosca parafusos soltos, aperta porcas, oleia com ideias zonas perras e alagadiças.
Saio com a rinite actualizada, cão de água pingante. Vou às compras nesse estado miserável e rumo aos pequenos arranjos caseiros de quem vai sair e só regressa depois do jantar, tratando que nada falte a quem fica. Depois, faço um caminho comprido a pensar na vida e num eu que encontro no carro e que, provavelmente, é de ficar dobradinho até à próxima viagem (como no carrossel). São viagens muito acompanhadas, dou boleia a imensa gente, sentam-se-me pelos braços e pernas, penduram-se no meu pescoço, acachapam junto ao vidro da frente tão maravilhados quanto eu com o operar de maravilhas nos campos primaveris. Se me atraso a sair, amontoam em silêncio no banco de trás e apenas se manifestam nas ultrapassagens perigosas num sopro de susto, “ssss….”. Respeitam o mau humor. Ou temem-no. Se acaso viajo acompanhada, não entram; ficam no alpendre a fazer-me adeus, as pessoas a meu lado, estás a rir para onde, e eu, oh, nada, estava distraída. Porém, na maior parte das vezes somos só nós, e por isso não ligo o rádio. Conversamos de mil coisas, canto uma cantiga ou outra a pedido e vemos a paisagem em silêncio, palavras a subir ao imprescindível de mim e eles a fazerem espaço. Pacificados.
Chego a Lisboa no estado de espírito de começo de mundo. E começo nesse mundo outro. Faço o que tenho a fazer e sou outra. Mais tarde, dispo-a e deixo-a atrás da porta da dispensa junto com as roupas de trabalho. Retomo-me à hora do lanche, frente a uma chávena de chá. Então, sacudo melancolias que me assolam dos vapores e antevejo-me a ler numa parede um verso tão profundamente amado que nos sinto mais velhos que a idade dele, “Ah, se eu não morresse nunca e eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas”. E nem sei a razão de me fazer falta vê-lo. Ali. Naquela parede de azulejo. Humanidade mais exposta não existe. Depois, sigo para uma aula de Poesia onde pouco aprendo e mais me interessam outras coisas.
Ontem era terça-feira e chovia. Pensei, e se o professor faltar?! Mas avancei as botas para o contínuo das poças e mergulhei nos oblíquos riscos de chuva, as árvores a choramingar pelas folhas pejadas, quem foi o palerma que nos trocou o tempo? Já temos ninhos e flores, nasceram-nos milhares de folhas…e agora? Que é feito do nosso contrato de habitação com os pássaros? Dei de ombros, não havia tempo para pensar em questões arborícolas. E continuei. A ensopar.
À saída do Metro dei de caras com um renque de malmequeres a acenar-me do meio do temporal, loucura! Não continues, volta atrás, regressa. Parei um bocadinho a olhar-lhes a brancura a destruir, as pessoas dentro dos carros e os transeuntes abrigados na traseira da reitoria, a mulher é parva, parada no meio da rua e a chover desta maneira. E eu que gosto de malmequeres, a elidir o recado que sacudia as corolas, mesmo quebrados de vento e chuva, tão bonitinhos; parece até que estão de mãos dadas, e o guarda-chuva para mim, ou seguras com mais força ou vou-me embora que estou farto de poesia barata. E eu a agarrá-lo com força, oh! Mal-educado... E disse adeus aos malmequeres a convencer-me, armada em raposa de fábula, são flores, não sabem o que dizem.
Porém, não é lícito desatender palpites chuvosos de malmequer. Estavam certos. Sabiam. O professor faltou (que uma reunião, que, que, que). Mas a Alda teve o bom gosto de me convidar e fomos as duas ocupar tempo e assistir a uma conferência na CLEPUL sobre a vivência do pós 25 de Abril nas ex-colónias portuguesas. E desgostei. As nossas universidades são assim: livrescas, agarradas a papéis e escritos, museológicas. Aborrecentes, como disse a filha de Lobo Antunes depois da visita ao museu. Calhou-nos ouvir duas professoras universitárias a perorar sobre duas obras de escritores africanos (um cabo verdiano e outro que não recordo). Suprema pobreza! Se eu desse uma aula igual, os meus alunos não se seguravam na sala. Foi mais ou menos o que aconteceu: as pessoas foram saindo, saindo (sem a algazarra que, seguramente, os meus alunos fariam). Quando eu, emparceirada com o guarda-chuva, já quase dormia de desalento, terminou. Como terminam todas as coisas do género, a assistência cingida à mesa e a um ou outro resistente (nós duas, feitas valentes); ouvem-se uns aos outros, portanto. Oh santa incapacidade de nos enxergarmos como somos e não fazermos força para mudar (digo eu que pouco mudo na vida).
A terminar, visitámos uma exposição que era quase exclusivamente cobertura jornalística de época e toda a gente muito nova, um brilho nos olhos, uma força de acreditar que queria mover montanhas e esvaneceu em quarenta outonos desiludidos. Saímos pesarosas de tanta esperança rasgada, da perda de confiança, de termos deixado chegar à política uns filhos de Abril que são filhos de uma senhora que tem um nome que não se diz, até por ter menos culpa no cartório que eles.
E depois, a chuva. Furiosa e armada de vento. A paisagem a encharcar, árvores frenéticas desde a raiz, descompostas, a dobrarem ramos até ao impossível, se isto não para, dá-me uma coisinha má e quebro de vez; filas de automóveis a escorrer teimosias de céu cinzento, os limpa para-brisas em frenesim de nervos. As nossas pernas na ousadia do labirinto automóvel, a atrasar de vento. Nós ambíguas de passos,  a suster arremessos e empurrões ventosos, em busca de uma bússola no desconcerto do dia, que horas são?  Se não fora a Alda, perdia-me em pleno, num lugar que conheço e me surgia acidulado e hostil, a natureza a despedir-nos, vão-se embora, fora daqui, a querer chorar e arrepelar-se a sós. Guarda-chuvas no arame e caminhávamos como se nada fosse, a comentar a conferência e a nossa estranheza face a professoras universitárias que são estudiosas de um determinado autor e não conseguem elucidar-nos sem debitar, nem denotam um pingo de emoção interessada no estudado. Que diabo! Não queremos que tenham Abril no sangue, mas tanta frieza arrepia. Não pode ser bom sintoma. E lembrei Piaget, assimilação, acomodação, equilibração… à comunicação daquelas senhoras faltou alguma coisa que não apenas de ordem emotiva.
Entretanto, nós dentro do temporal, a rir do irrisório de tudo e a salvaguardar uma simpatia elegante e cordial, as músicas do Zeca que não ouvimos, uma canção cabo Verdiana, apelo à lentidão tropical balançada nas ancas a que o cabo da minha sombrinha foi sensível.  Na boca iluminada do Metro,  Cesário  recebe-nos eterno, num sorriso de azulejo a escorrer lágrimas de guarda-chuva, “Ah, se eu não morresse nunca e eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas”.

Despedimo-nos a confirmar percursos e seguimos para as nossas vidas. Domésticas e comedidas. Mas no fundo de mim, “Ah, se eu não morresse nunca…”. e pouco me importa a morte, que tanto mais eu queria, ininterrupta, buscar a perfeição das coisas. Buscar. Ainda que só o imperfeito. E dou-me conta que, volvidos 40 anos, talvez seja o mais necessário: que o espírito procure afadigadamente e sem tardança. Assim eu te procuro. Sempre.

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