Hoje, a água cai em pingos grossos, desviados
uns dos outros como se não queiram tocar-se e executem o seu trabalho,
profissionais, num mutismo cerrado que os trovões cortam a arrastar os móveis
pesados do céu, cómodas enormes de gavetas a abarrotar, camas grandiosas e
gigantescas. E os trovões aos pontapés a eles, a riscar luz no céu a cada
movimento, vaidosos de calçarem ténis luminosos; e arrastam-se a murmurar na
sua voz antiga, como gigante ou deus engasgado que se eterniza a limpar a
garganta, cheios de sons guturais, autênticas garras para o medo humano.
Palermices de quem se veste da água que cai do céu. Ou de quem a vê e sente.
Abençoada chuva!
Agora que a cabeça me ficou literalmente
fresquinha, concluo que na relação eu-volante, encontrarei sempre alguma coisa
nova para acrescentar à longa enumeração de despropósitos. Portanto, vou
assestar baterias a outro tema – saturei deste – e abandonar o assunto sem o
esgotar. Consola-me a ideia de que um filósofo - Giorgio Agamben – partilha da
minha opinião: nos seus livros, os temas não estão fechados. E cita Giacometti,
“nunca terminas uma pintura, abandona-la”. Prefiro este sentido de inacabado, o
inconcluso fustiga-me mais que o encerrado, o completo, o final. O imutável sem
acrescentos é inumano. E bastante desumano.
Não deixo o tema com um episódio-chave, mas
com excertos de dois, que não amiúdo. Pálido será este acrescento, que as
minhas experiências com volantes são mais o eu que o eles.
Certo dia em que fui mais cedo para
o trabalho, encontrei uma garota conhecida, abrandei, rodei o manípulo do vidro,
pus a cabecinha de fora a chamá-la pelo nome e logo lhe ofereci boleia. Ela aceitou
contente, riso aberto, o horário e o local de trabalho eram comuns. Sentou-se e
fui guiando devagar, na busca de um lugar onde proceder à inversão de marcha.
Passara vezes sem conta nessa rua em corrida para um comboio. Porém, a perspectiva
de um pedestre da minha qualidade, em nada favorece o eu condutor, era como se
nunca a tivesse pisado. A garota ia-me assinalando os edifícios um a um, havia sol,
a manhã augurava um dia luminoso e seguíamos contentes e descontraídas. Já íamos
quase no final da rua quando vi um portão aberto e o julguei oportuno para o
que me interessava. Porém, tal como na noite de chuva – o problema não foi ser
noite nem haver chuva –, encostei demais. E, claro, repeti tudo, travei e saí
do carro. E ele não desencostou. Estava ali, coladinho no portão. A fixidez das
coisas pode ser apavorante.
Entretanto,
a minha companheira saiu, mirou a asneira e disse muito descansada, eu ainda
não tirei a carta nem tenho nada com isso, mas já riscou o carro. E foi
sentar-se no seu lugar, sorriso um tudo nada mais curto. Quanto a mim iniciara
a fase de suor abundante, mãos viscosas por inteiro. Entrei, saí, voltei a entrar…
A
pendura, muito mais nova mas com bastante mais senso que eu, já estamos atrasadas e não pode deixar o carro assim, não sei se reparou mas está
um bocado atravessado na estrada. Cada vez mais aflita, confirmei a sua
afirmação e fui de novo verificar o portão. Pousei-lhe o meu extremo de atenção
e reparei que tinha uma estrutura em madeira a toda a volta e o resto eram
quadrados de arame ondulado, outrora verdes. Apliquei a receita de meu pai. Sem
resultado. O palerma não se afastou nem um bocadinho. Já a contrarrelógio que o
tempo escasseava, sentei-me de novo a matutar. De repente, viro-me para a garota
e, Maria João, de quem é o terreno? Ela, não sei, está sempre assim de portão
aberto, mas não me parece que viva aí alguém. Saímos a averiguar.
Espreitámos.
Lá dentro crescia um matagal onde duas ou três cabras sem pernas mastigavam um
contentamento clorofílico. Olhei a garota a medi-la enquanto sentia o suor a
correr nos escaninhos mais imprevistos (não era só costas abaixo, não) e
adiantei, se a gente arrancar o portão deste lado? As traves estão todas podres
– e a apontar um lugar - Deixo-as aqui
para o caso disto fazer falta. Ela a abrir a porta do carro num desejo quase
perverso de estar sentada, a monologar, eu não vi nada, nem sei de nada, pode fazer o que
quiser que eu não vejo; - e num desabafo sussurrado - ai se a minha mãe sabe. Então eu, uma
mulher cheia da força dos fracos, sem olhar para lado nenhum senão para o barrote,
arranquei o bocado que oprimia a minha manobra, coloquei os despojos muito
direitos ao lado da ombreira do portão, terminei a manobra e fomos ao nosso
destino.
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