terça-feira, 9 de junho de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

 Hoje, a água cai em pingos grossos, desviados uns dos outros como se não queiram tocar-se e executem o seu trabalho, profissionais, num mutismo cerrado que os trovões cortam a arrastar os móveis pesados do céu, cómodas enormes de gavetas a abarrotar, camas grandiosas e gigantescas. E os trovões aos pontapés a eles, a riscar luz no céu a cada movimento, vaidosos de calçarem ténis luminosos; e arrastam-se a murmurar na sua voz antiga, como gigante ou deus engasgado que se eterniza a limpar a garganta, cheios de sons guturais, autênticas garras para o medo humano. Palermices de quem se veste da água que cai do céu. Ou de quem a vê e sente. Abençoada chuva!
            Agora que a cabeça me ficou literalmente fresquinha, concluo que na relação eu-volante, encontrarei sempre alguma coisa nova para acrescentar à longa enumeração de despropósitos. Portanto, vou assestar baterias a outro tema – saturei deste – e abandonar o assunto sem o esgotar. Consola-me a ideia de que um filósofo - Giorgio Agamben – partilha da minha opinião: nos seus livros, os temas não estão fechados. E cita Giacometti, “nunca terminas uma pintura, abandona-la”. Prefiro este sentido de inacabado, o inconcluso fustiga-me mais que o encerrado, o completo, o final. O imutável sem acrescentos é inumano. E bastante desumano.
             Não deixo o tema com um episódio-chave, mas com excertos de dois, que não amiúdo. Pálido será este acrescento, que as minhas experiências com volantes são mais o eu que o eles.
            Certo dia em que fui mais cedo para o trabalho, encontrei uma garota conhecida, abrandei, rodei o manípulo do vidro, pus a cabecinha de fora a chamá-la pelo nome e logo lhe ofereci boleia. Ela aceitou contente, riso aberto, o horário e o local de trabalho eram comuns. Sentou-se e fui guiando devagar, na busca de um lugar onde proceder à inversão de marcha. Passara vezes sem conta nessa rua em corrida para um comboio. Porém, a perspectiva de um pedestre da minha qualidade, em nada favorece o eu condutor, era como se nunca a tivesse pisado. A garota ia-me assinalando os edifícios um a um, havia sol, a manhã augurava um dia luminoso e seguíamos contentes e descontraídas. Já íamos quase no final da rua quando vi um portão aberto e o julguei oportuno para o que me interessava. Porém, tal como na noite de chuva – o problema não foi ser noite nem haver chuva –, encostei demais. E, claro, repeti tudo, travei e saí do carro. E ele não desencostou. Estava ali, coladinho no portão. A fixidez das coisas pode ser apavorante.
Entretanto, a minha companheira saiu, mirou a asneira e disse muito descansada, eu ainda não tirei a carta nem tenho nada com isso, mas já riscou o carro. E foi sentar-se no seu lugar, sorriso um tudo nada mais curto. Quanto a mim iniciara a fase de suor abundante, mãos viscosas por inteiro. Entrei, saí, voltei a entrar…
A pendura, muito mais nova mas com bastante mais senso que eu, já estamos atrasadas e não pode deixar o carro assim, não sei se reparou mas está um bocado atravessado na estrada. Cada vez mais aflita, confirmei a sua afirmação e fui de novo verificar o portão. Pousei-lhe o meu extremo de atenção e reparei que tinha uma estrutura em madeira a toda a volta e o resto eram quadrados de arame ondulado, outrora verdes. Apliquei a receita de meu pai. Sem resultado. O palerma não se afastou nem um bocadinho. Já a contrarrelógio que o tempo escasseava, sentei-me de novo a matutar. De repente, viro-me para a garota e, Maria João, de quem é o terreno? Ela, não sei, está sempre assim de portão aberto, mas não me parece que viva aí alguém. Saímos a averiguar.

Espreitámos. Lá dentro crescia um matagal onde duas ou três cabras sem pernas mastigavam um contentamento clorofílico. Olhei a garota a medi-la enquanto sentia o suor a correr nos escaninhos mais imprevistos (não era só costas abaixo, não) e adiantei, se a gente arrancar o portão deste lado? As traves estão todas podres – e a apontar um lugar -  Deixo-as aqui para o caso disto fazer falta. Ela a abrir a porta do carro num desejo quase perverso de estar sentada, a monologar, eu não vi nada, nem sei de nada, pode fazer o que quiser que eu não vejo; - e num desabafo sussurrado - ai se a minha mãe sabe. Então eu, uma mulher cheia da força dos fracos, sem olhar para lado nenhum senão para o barrote, arranquei o bocado que oprimia a minha manobra, coloquei os despojos muito direitos ao lado da ombreira do portão, terminei a manobra e fomos ao nosso destino. 

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