Há
pessoas a quem o bulício não entusiasma. A minha mãe pertencia a esse número. Tinha
jeito recatado e palavras de acinte, e bastante me apraz que um dos netos use
às vezes o mesmo estilo. São pessoas que estão nos lugares sem que a ninguém pese
a sua atenção, expressam-se em parca e luminosa palavra e
avaliam cirurgicamente. O seu
raciocínio é cristal simples, beleza maior que agradecemos.
Na infância, estas qualidades de minha
mãe desanimavam-me. Avessa a burburinho, afastava-se de mexericos e festas e eu
gostaria de festas, feiras, gente. Mas é verdade que a única vez que fomos os
três – eu e meus pais – a uma feira, não passámos da primeira barraca de comes
e bebes. Que horas longas. Já muito tarde, todas cansaço e fome – só havia
bebida -, o meu pai, numa alegria e força avinhadas e caprichosas, arrancou-me
ao colo onde dormitava e obrigou-me a ir com ele para os carrinhos de choque. Nesse
tempo, tinha um medo irracional dele e dos carros de choque e desatei num
berreiro apavorado que o fez reverberar na decisão, a insana robustez da teimosia ébria a impôr-se sobre razão e afectos. Lembro a minha debilidade estéril
que ansiava por minha mãe e os seus braços a magoar-me o corpo como grades de
prisão rentes à pele, sem afrouxamento, uma respiração etilizada que me há-de agoniar até à morte. E da aflição no rosto de minha mãe doendo-me não sei onde, mas pode que
no corpo todo. Entretanto, a corrida começara e o ruído ensurdecedor dos carros
em andamento tomou conta do recinto e abafou os meus gritos de medo, colou-se
hipnótico às faíscas que chispavam do chão, ao pesadelo dos choques dos carros
uns nos outros. E no meio deste desatino devo ter ficado inerte de terror e houve o repentino
do meu pescoço atirado para trás como puxado por uma mola e o sangue a correr. O
meu pai de bebedeira aflita para a minha pobre mãe de olhos enevoados e braços estendidos, bateu no
ferro do carro, não se segurou, a culpa foi dela. Ou qualquer coisa assim. E
queria desaparecer dentro daquele colo, pouco importada da dor e dos soluços
imparáveis, a pensar contínua se as rugas do vestido me escondiam o suficiente para
que ele não me visse mais, não me puxasse de novo e nunca nunca me encontrasse.
O primeiro contacto com carrinhos de
choque foi traumático. À séria e com sequelas. Mas os traumas superam-se. Como?
Sobrepondo-lhes situações muito mais irrisórias e até hilariantes. Com objectos
da mesma natureza, pois claro. A vida fez-me esse favor. Preencheu os espaços
em branco. Porque eu, por mim mesma, nunca mas nunca mais, pus, voluntariamente,
um pé num carrinho de choque.
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