quarta-feira, 3 de junho de 2015

Volantes Que Me Fazem O Ser

Há pessoas a quem o bulício não entusiasma. A minha mãe pertencia a esse número. Tinha jeito recatado e palavras de acinte, e bastante me apraz que um dos netos use às vezes o mesmo estilo. São pessoas que estão nos lugares sem que a ninguém pese a sua atenção, expressam-se em parca e luminosa  palavra e  avaliam cirurgicamente.  O seu raciocínio é cristal simples, beleza maior que agradecemos.
            Na infância, estas qualidades de minha mãe desanimavam-me. Avessa a burburinho, afastava-se de mexericos e festas e eu gostaria de festas, feiras, gente. Mas é verdade que a única vez que fomos os três – eu e meus pais – a uma feira, não passámos da primeira barraca de comes e bebes. Que horas longas. Já muito tarde, todas cansaço e fome – só havia bebida -, o meu pai, numa alegria e força avinhadas e caprichosas, arrancou-me ao colo onde dormitava e obrigou-me a ir com ele para os carrinhos de choque. Nesse tempo, tinha um medo irracional dele e dos carros de choque e desatei num berreiro apavorado que o fez reverberar na decisão, a insana robustez da teimosia ébria a impôr-se sobre razão e afectos. Lembro a minha debilidade estéril que ansiava por minha mãe e os seus braços a magoar-me o corpo como grades de prisão rentes à pele, sem afrouxamento, uma respiração etilizada que me há-de agoniar até à morte. E da aflição no rosto de minha mãe doendo-me não sei onde, mas pode que no corpo todo. Entretanto, a corrida começara e o ruído ensurdecedor dos carros em andamento tomou conta do recinto e abafou os meus gritos de medo, colou-se hipnótico às faíscas que chispavam do chão, ao pesadelo dos choques dos carros uns nos outros. E no meio deste desatino devo ter ficado inerte de terror e houve o repentino do meu pescoço atirado para trás como puxado por uma mola e o sangue a correr. O meu pai de bebedeira aflita para a minha pobre mãe de olhos enevoados e braços estendidos, bateu no ferro do carro, não se segurou, a culpa foi dela. Ou qualquer coisa assim. E queria desaparecer dentro daquele colo, pouco importada da dor e dos soluços imparáveis, a pensar contínua se as rugas do vestido me escondiam o suficiente para que ele não me visse mais, não me puxasse de novo e nunca nunca me encontrasse.

            O primeiro contacto com carrinhos de choque foi traumático. À séria e com sequelas. Mas os traumas superam-se. Como? Sobrepondo-lhes situações muito mais irrisórias e até hilariantes. Com objectos da mesma natureza, pois claro. A vida fez-me esse favor. Preencheu os espaços em branco. Porque eu, por mim mesma, nunca mas nunca mais, pus, voluntariamente, um pé num carrinho de choque.

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