terça-feira, 23 de junho de 2015

Circe No Alfa Pendular

Tão linda a Carina! Trabalha no Circo Cardinalli (o Cardinalli é seu tio) e suponho que seja a figura principal do espectáculo. Tem dezassete lindos anos, é aluna de quadro de mérito e faz todos os exames em Lisboa devido à transumância da profissão. Gastou um ano a aprender e treinar o número com as faixas. Agora treina, pela primeira vez, um número de trapézio que lhe fere as pernas na parte de trás dos joelhos onde, depois do treino, os exercícios deixam feridas quase em sangue aberto (mostrou-nos uma foto, não treina em época de exames porque a escola está primeiro) e as mãos idem (também vimos). Aprendemos que não pode parar de se exercitar por estar ferida, que treina sobre, com dor redobrada, a magoar, a magoar, até ganhar o que chamou “o calo”.
A espontaneidade desta garota mostrou uma inquebrável vontade de viver e executar na perfeição o número de trapézio, facetas que não encontrei por exemplo nos jovens da mesma idade – maior parte deles – que cursam as escolas sem outra profissão além do estudo. Ouvi-a falar inglês e espanhol perfeitos (namora em espanhol, a mãe é inglesa). Soubemos que tem pais e irmãs artistas; a mais velha trabalha num circo internacional e foi tão boa aluna quanto ela; e a caçulinha tem sete anos bem formosos e promissores. O pai é supersticioso e tem bom augúrio nos números sete: todas as filhas nasceram em dias com sete. E este ano é um bom ano para a família, as filhas têm dez anos de diferença entre si, uma com sete, a Carina fez dezassete e a mais velha vinte sete. Estivemos assim até ao Porto – ela ia para Braga –, dependuradas no mundo da Carina, onde a noção de família convive com a de empenho e gosto no que se faz. Encantei na miúda que se exercita vezes sem conta em duas horas diárias, sem feriados ou dias santos, até que o número difícil pareça fácil a quem o vê (a prática não retira dificuldade à execução). Confidenciou-nos que  é esse o objectivo, tudo parecer liso, fluente. Deixei um obrigada aos pais. E como nos fez bem observar o que aquela garota gosta da vida, do circo e da profissão.

Com tudo isto, não vi a paisagem que acelerava na janela. Já atravessávamos a ponte quando soubemos que Campanhã estava próxima, o casario do Porto ali tão perto, em sua geometria específica. Observar aquela adolescente feliz ao longo de três horas naturais – a partir do meio da viagem, até eu compreendi que não estava apenas contente –, foi bálsamo no meu coração. Lamento ter guardado as palavras, talvez lhe fizesse bem sabê-las, que a gente ignora a medida em que os outros nos agradecem. Mas disse-lhe outras. E prometi que, se o circo se apresente na minha terra, eu que nem aprecio o espectáculo, vou vê-la actuar. Em directo. Palavra de escuteiro.

2 comentários:

  1. como tu consegues fazer de um encontro, que se diria trivial, um acontecimento! como lhe sabes dar a sua verdadeira dimensão - a do extraordinário! Que a mim me parece que essa menina foi tão verdade como o comboio que te deixou no Porto.

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  2. Pois (termo muito utilizado pela minha avó quando não sabia que resposta dar).

    Um beijinho para ti, ó tintas (tintinhas, quero dizer)

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