Tão
linda a Carina! Trabalha no Circo Cardinalli (o Cardinalli é seu tio) e suponho
que seja a figura principal do espectáculo. Tem dezassete lindos anos, é aluna
de quadro de mérito e faz todos os exames em Lisboa devido à transumância da
profissão. Gastou um ano a aprender e treinar o número com as faixas. Agora
treina, pela primeira vez, um número de trapézio que lhe fere as pernas na
parte de trás dos joelhos onde, depois do treino, os exercícios deixam feridas
quase em sangue aberto (mostrou-nos uma foto, não treina em época de exames
porque a escola está primeiro) e as mãos idem (também vimos). Aprendemos que
não pode parar de se exercitar por estar ferida, que treina sobre, com dor
redobrada, a magoar, a magoar, até ganhar o que chamou “o calo”.
A
espontaneidade desta garota mostrou uma inquebrável vontade de viver e executar
na perfeição o número de trapézio, facetas que não encontrei por exemplo nos jovens da
mesma idade – maior parte deles – que cursam as escolas sem outra profissão
além do estudo. Ouvi-a falar inglês e espanhol perfeitos (namora em espanhol, a
mãe é inglesa). Soubemos que tem pais e irmãs artistas; a mais velha trabalha
num circo internacional e foi tão boa aluna quanto ela; e a caçulinha tem sete
anos bem formosos e promissores. O pai é supersticioso e tem bom augúrio nos
números sete: todas as filhas nasceram em dias com sete. E este ano é um bom
ano para a família, as filhas têm dez anos de diferença entre si, uma com sete,
a Carina fez dezassete e a mais velha vinte sete. Estivemos assim até ao Porto
– ela ia para Braga –, dependuradas no mundo da Carina, onde a noção de
família convive com a de empenho e gosto no que se faz. Encantei na miúda que
se exercita vezes sem conta em duas horas diárias, sem feriados ou dias santos,
até que o número difícil pareça fácil a quem o vê (a prática não retira
dificuldade à execução). Confidenciou-nos que
é esse o objectivo, tudo parecer liso, fluente. Deixei um
obrigada aos pais. E como nos fez bem observar o que aquela garota gosta da
vida, do circo e da profissão.
Com
tudo isto, não vi a paisagem que acelerava na janela. Já atravessávamos a ponte
quando soubemos que Campanhã estava próxima, o casario do Porto ali tão perto, em
sua geometria específica. Observar aquela adolescente feliz ao longo de três horas
naturais – a partir do meio da viagem, até eu compreendi que não estava apenas
contente –, foi bálsamo no meu coração. Lamento ter guardado as palavras, talvez
lhe fizesse bem sabê-las, que a gente ignora a medida em que os outros nos
agradecem. Mas disse-lhe outras. E prometi que, se o circo se apresente na
minha terra, eu que nem aprecio o espectáculo, vou vê-la actuar. Em directo.
Palavra de escuteiro.
como tu consegues fazer de um encontro, que se diria trivial, um acontecimento! como lhe sabes dar a sua verdadeira dimensão - a do extraordinário! Que a mim me parece que essa menina foi tão verdade como o comboio que te deixou no Porto.
ResponderEliminarPois (termo muito utilizado pela minha avó quando não sabia que resposta dar).
ResponderEliminarUm beijinho para ti, ó tintas (tintinhas, quero dizer)