segunda-feira, 22 de junho de 2015

Circe No Alfa Pendular

As viagens com estadia existem-nos desde a concepção. Alegra-nos a vida sabê-las no horizonte: curtas ou longas; a média, pequena ou grande distância. O certo é que vivê-las nos enreda num mundo diverso. Salvíficas, pescam-nos à cronometria das horas e, sobretudo, dão-nos tempo livre. É isso mesmo, tempo livre. Não o tempo de ler, de ver televisão, de ir ao cinema. Rigorosamente, dão-nos o tempo de coisa nenhuma. Um tempo para nada. Tempo que é, enfim, ele mesmo. Nosso e sem finalidade, portas seladas ao quotidiano de deveres. Pessoalmente, o que mais me descansa é o tempo de nada a fazer. Sem compras e contas sobre contas, refeições, máquinas de roupa, ruas a limpar, flores a regar, visitas. 
Pode o leitor dubitar em solilóquio, e não terá esta mulher um tempinho de coisa nenhuma em sua casa, e é claro que sim, sem ele, já eu teria encarquilhado, o completo do meu ser ressequido e todo espartiçado. Porém, esse é alívio momentâneo, cálice de brevidade. Desconta mais do que conta. Viajar sim, conta.
Não sei de que substância dependo, mas a verdade é que as viagens acenam-me do longe e logo se me amplia o espaço de viver, a concentração da alma a derramar por ele inteiro. Neste anteparo do estado de graça,  apuram-se-me os sentidos: noto o sol e a lua, e distingo tão claramente as supernovas como as ervas mais brandas e rasteiras do caminho. Não sendo dada a grandes e pormenorizados planos, o futuro aparece-me, então, como tapete que rola com vagar e nem sempre sem atrito, que emperra e tem de ser desmontado, oleado; que, reposta a engrenagem, retoma o curso uma e outra vez. E o que sem a cenoura me aparece um ziguezague esforçado e aleatório, como que ganha forma e figura se, lá à frente, um sopro agita a bandeira que sonho empunhar: uma viagem.
Foi em conversa banal que a ideia despontou. Talvez viesse apenas como vontade de evasão, pura necessidade – um fim-de-semana à vontade. Fora de órbita.
De rompante, na catadupa das horas e dos deveres, abrimos uma brecha e demos por nós dentro de um comboio.
Da viagem retive, no outro lado da mesa, uns olhos lindos e verdes, cabelo loiro, figura esguia em blusinha de alças, boca grande e sorridente a que um aparelho não tirava figura. Rosto limpo de maquilhagem, um moreno pesseguento e apetecível de dentadinhas na pele. Estava contente poro a poro. Depois da troca de sorrisos e dos comentários afogueados sobre a fatalidade de um calor a rondar os 40 graus em comboio preparado para arrefecer apenas 10 (não volto a viajar sem o leque, nem que vá para o polo norte), compreendemos que vinha do último exame de 12º ano. Perguntei como tinha corrido e o sorriso satisfeito em antecipação. Por desfastio, indaguei o que queria seguir. E ela, não quero continuar, não preciso. Devo ter feito um ah pouco convincente, que acrescentou  em contentamento qualquer coisa que os ruídos do comboio me impediram. E a minha irmã de olhos postos nos meus, a esclarecer-me, é circense. E eu sem pio, meio tontinha, para dentro de mim, mas há algum país ou lugar de nome Circe, então a Circe não é a deusa que reteve o Ulisses por anos e anos… E a mana que já olhava em frente e tinha continuado a conversa que eu não entendia, perante o meu silêncio idiota e a baralhar-me ainda mais, apontou na sua vozinha terna, diz que trabalha com os panos. A minha atordoada cabeça, trabalha com os panos como, que profissão será essa, em Circe e a trabalhar com panos (palavra, que me parecia coisa da Grécia antiga). E disse alto, para não me comprometer, ah sim, e como é. Então, a garota, um tudo nada de orgulho no olhar, prime um botão, passa-me o telemóvel  para a mão (sei lá o que era) e mostra-me em filme um número de contorcionismo acrobático espectacular executado  com auxílio de duas faixas de seda que descem quase desde o tecto de uma tenda de circo – a minha mente a acordar, ah sim, circense, circo, tá bem –. Um corpo extraordinário e inverosímil (seu, dela) que me assustou de cada vez que se desenleava e descia, repentino, mais uns metros (veio vindo naquele espectáculo desde o cimo). Sempre a baixar artisticamente, o cabelo solto feito mancha amarela oscilante  se de cabeça para baixo ou a fazer ângulo com a faixa. Uma Profissional!

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