terça-feira, 9 de agosto de 2016

Mistérios de "Fazer anos"

O raciocínio infantil, por mais que os adultos tentem penetrá-lo, joeirá-lo agitando a bandeira de  lógica própria, guarda, por amostragem e real explanação, alguma surpresa. Ou será apenas, boicotada a inocência do mundo simples, estranheza de quem cresceu e perdeu a sua “barriga de imprevisto”. Ora, a originalidade inesperada das crianças instiga afectos, move a infância recôndita de cada homem, faz nascer a paciência terna. É em demanda desse espírito que rememoramos a nossa originária organização de mundo e sorrimos beatíficos aos elos simples que construímos em espontaneidade tão vincada que mais nos parece havê-los importado, feitos e acabados, do ventre materno.  Para as crianças, o mundo é como o conhecem e tem a sua explicação. Os porquês que as engordam e consomem não pretendem mudar o conhecido, mas entender corpos estranhos que invadiram a placenta mundana.
Os homens preocupam-se com o tempo porque sabem da morte; zelam pelo presente pensando no futuro. Mas as crianças são como Deus: eterno presente. A seus olhos, os velhos foram sempre velhos; pais, primos, tios e demais gente são imutáveis. Verdadeiramente, só elas crescem e fazem anos. Os outros, cada um em sua idade, são adereço, compõem–lhe o quadro. Talvez hoje as crianças sejam diferentes e saibam, por experiência, que todas as pessoas têm um dia de aniversário. Mas, aceite o facto, continuamos comparsas inalteráveis do seu mundo seguro. Como as árvores, as casas, os animais domésticos. Cenário activo, é o que somos. São como Deus, elas. Só nelas, os anos não nos alteram. Amam em nós o invisível.
Também habitei este mundo de figurantes em que só eu fazia anos; e só um de cada vez. Apetecia-me ter muitos anos, apreciava-me deveras com números que julgava grandes, como quarenta e sete, e me dariam outra autoridade se me perguntassem, quantos anos tens. Mas ninguém me deixava ter quarenta e sete anos. Riam-se. Arreliava-me darem-me uns anos pequenos e de contar pelos dedos, a minha mãe a esticar uns e encolher outros, a ensinar-me a habilidade: vá, com este dedo seguras o outro, e punha-me o polegar em gancho sobre o indicador.  
A princípio, não me apercebi de haver um dia de fazer anos. De repente, sem eu entender como, diziam-me que era mais velha. Tinha mais um ano. Intrigava-me sobremaneira que os meus pais tivessem tanta certeza, agora tens três; agora tens quatro; agora tens cinco e é uma mão inteira de dedos. Como é que eles sabiam?! Para mim, não havia mal em ter quatro muito tempo, eu gostava do quatro que se escrevia uma cadeira ao contrário. Não percebia para que servia uma cadeira ao contrário, mas gostava dele. Perguntava a minha mãe, e não podemos pôr a cadeira direita? E ela, com um sorriso dentro da negativa, desimaginava-me de números que fossem cadeiras em posição de sentar. Eu, sentido estético muito virado à utilidade, mas ficava mais bonito, alguém podia sentar-se...e deitava-me a imaginar e a fazer uns gatafunhos com o quatro na posição que era certa para mim e onde punha uma travessa a ligar as pernas da cadeira, porque  as travessas faziam-me jeito aos pés. Haver um número que é uma cadeira de pernas para o ar ainda hoje me entusiasma. Dada a qualidade dos meus entusiasmos, é claro que a matemática a sério me continua marginal.
Há uma primeira vez para tudo. Um dia, fui convidada para os anos de uma amiga e esclareci vários mistérios sobre aniversários. E ganhei outros. Que na infância é assim mesmo, troca por troca. O primeiro, foi haver festas de anos. Em mim, os anos aumentavam um a um, sem atropelos e sem festa. O segundo, foi haver gente que tinha tias com máquinas fotográficas. As minhas tias só tinham romances da Corín Tellado e uns cestinhos cor de rosa com um ramito de flores bem a meio, com que eu me pavoneava quase a arrastá-los mal as apanhava distraídas. Elas sôfregas, numa corrida de mão em riste, dá cá isso à tia, não se brinca com a mala da tia. Mas a tia da Nide, que só mais tarde soube chamar-se Leonilde, era uma senhora fina: pintava os lábios de vermelho vivo, usava fato de saia justa, e calçava sapatos de salto alto. 

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