O raciocínio infantil, por mais que os
adultos tentem penetrá-lo, joeirá-lo agitando a bandeira de lógica
própria, guarda, por amostragem e real explanação, alguma surpresa. Ou será
apenas, boicotada a inocência do mundo simples, estranheza de quem cresceu e
perdeu a sua “barriga de imprevisto”. Ora, a originalidade inesperada das
crianças instiga afectos, move a infância recôndita de cada homem, faz nascer a
paciência terna. É em demanda desse espírito que rememoramos a nossa originária
organização de mundo e sorrimos beatíficos aos elos simples que construímos em
espontaneidade tão vincada que mais nos parece havê-los importado, feitos e
acabados, do ventre materno. Para as crianças, o mundo é como o conhecem e tem a sua explicação. Os porquês que as engordam e consomem não pretendem
mudar o conhecido, mas entender corpos estranhos que invadiram a placenta
mundana.
Os homens preocupam-se com o tempo porque sabem da
morte; zelam pelo presente pensando no futuro. Mas as crianças são como Deus:
eterno presente. A seus olhos, os velhos foram sempre velhos; pais, primos,
tios e demais gente são imutáveis. Verdadeiramente, só elas crescem e fazem
anos. Os outros, cada um em sua idade, são adereço, compõem–lhe o quadro.
Talvez hoje as crianças sejam diferentes e saibam, por experiência, que todas
as pessoas têm um dia de aniversário. Mas, aceite o facto, continuamos
comparsas inalteráveis do seu mundo seguro. Como as árvores, as casas, os
animais domésticos. Cenário activo, é o que somos. São como Deus, elas. Só
nelas, os anos não nos alteram. Amam em nós o invisível.
Também habitei este mundo de figurantes em
que só eu fazia anos; e só um de cada vez. Apetecia-me ter muitos anos,
apreciava-me deveras com números que julgava grandes, como quarenta e sete, e
me dariam outra autoridade se me perguntassem, quantos anos tens. Mas ninguém
me deixava ter quarenta e sete anos. Riam-se. Arreliava-me darem-me uns anos
pequenos e de contar pelos dedos, a minha mãe a esticar uns e encolher outros,
a ensinar-me a habilidade: vá, com este dedo seguras o outro, e punha-me o
polegar em gancho sobre o indicador.
A princípio, não me apercebi de haver um dia
de fazer anos. De repente, sem eu entender como, diziam-me que era mais velha.
Tinha mais um ano. Intrigava-me sobremaneira que os meus pais tivessem tanta
certeza, agora tens três; agora tens quatro; agora tens cinco e é uma mão
inteira de dedos. Como é que eles sabiam?! Para mim, não havia mal em ter
quatro muito tempo, eu gostava do quatro que se escrevia uma cadeira ao
contrário. Não percebia para que servia uma cadeira ao contrário, mas gostava
dele. Perguntava a minha mãe, e não podemos pôr a cadeira direita? E ela, com
um sorriso dentro da negativa, desimaginava-me de números que fossem cadeiras
em posição de sentar. Eu, sentido estético muito virado à utilidade, mas ficava
mais bonito, alguém podia sentar-se...e deitava-me a imaginar e a fazer uns
gatafunhos com o quatro na posição que era certa para mim e onde punha uma
travessa a ligar as pernas da cadeira, porque as travessas faziam-me
jeito aos pés. Haver um número que é uma cadeira de pernas para o ar ainda hoje
me entusiasma. Dada a qualidade dos meus entusiasmos, é claro que a matemática
a sério me continua marginal.
Há uma primeira vez para tudo. Um dia, fui
convidada para os anos de uma amiga e esclareci vários mistérios sobre
aniversários. E ganhei outros. Que na infância é assim mesmo, troca por troca.
O primeiro, foi haver festas de anos. Em mim, os anos aumentavam um a um, sem
atropelos e sem festa. O segundo, foi haver gente que tinha tias com máquinas
fotográficas. As minhas tias só tinham romances da Corín Tellado e uns
cestinhos cor de rosa com um ramito de flores bem a meio, com que eu me
pavoneava quase a arrastá-los mal as apanhava distraídas. Elas sôfregas, numa
corrida de mão em riste, dá cá isso à tia, não se brinca com a mala da tia. Mas
a tia da Nide, que só mais tarde soube chamar-se Leonilde, era uma senhora
fina: pintava os lábios de vermelho vivo, usava fato de saia justa, e calçava sapatos
de salto alto.
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