Ora, há
ideias que falsamente nos abandonam. Encenam a retirada, mas demoram-se nos
bastidores; e por ali ficam emudecidas, a trabalhar em secretismo de teia. Que vai crescendo no segredo do público que também
somos. Um dia, irrompem pletóricas. Invadem-nos. Exigem. E nós, que dizemos
fazer-nos livres e autónomos, cedemos. Deixamo-nos levar. Próximos da
irracionalidade.
Portanto,
quando a puberdade me apanhou e perdi toda a graça e proporção, desatei a
desejar a festa de anos com a mesma convicção com que antes a enxotara. Lamurienta por sistema – defeito que conservo -, queixava-me
de não ter tido um bolo de anos, não passar em festa o aniversário, não
retribuir os convites das minhas poucas amigas, não receber prendas de anos.
Cantilena que por certo fez mossa em minha mãe, pessoa que eu julgava
olimpicamente insensível a estes pesares. Em vésperas de fazer treze anos, surgiu
o anúncio, podes convidar duas ou três amigas e festejar os teus anos. Num
rompante, enchi-a de beijos e abraços e começámos a pensar no lanche.
Ora,
na minha única e primeira festa de anos, tudo correu mal. Não tínhamos electricidade
na aldeia e o calor apertou desde cedo. E o meu bolo de anos desacertou: não cresceu
e apresentava um inexplicável sabor a azedo; já o fizera vezes sem conta, volumoso
de aspecto e sabor. Com os últimos ovos da capoeira, tentei outro que persistiu
no raquitismo. Então, esqueci a idade e abri num desconsolo de imprecações que
nem sabia a quem dirigir e, à falta de outro receptor, alvejei sem dó a minha
mãe inocente. Mais parecia que um diabo se soltara em mim, à vista de outro que
me contrariava. Que é que iam pensar as minhas colegas.
O
meu pai, cedo desapareceu e o dia foi ganhando horas de calor e modôrra. Das
minhas três convidadas, compareceu uma. Éramos nós duas com o calor e um bolo
minguado: a massa encolhida dentro da forma mais parecia uma hóstia de
chocolate que um bolo. Não pudemos tomar banho no tanque que gastara a manhã
inteira a esfregar e escorraçar de
lismos e outros sargaços, a poder de esfregão de arame, vassouras e pá. E que o
meu pai enchera de água fresca com o aviso, só entram lá dentro com os pés bem
limpos, não quero o fundo cheio de terra.
Portanto,
o meu sonho de vestir o fato de banho de minha prima, esboroou. Cheia de
reparos sobre a raridade, levara-mo a casa de véspera, olha bem a cor, não é
encarnado, é cereja – e a implantar-me a verdade no fundo dos olhos –. É uma
cor linda. E aqui - apontava um ligeiro franzido a meio do peito aramado -, tem
um lacinho branco que é uma graça. E um bocadinho de saia e de perna - e esticava a saia breve sobre o
términus em calção.
Não
sei a razão, mas o certo é que não vi até hoje coisa mais retro e bonita que
aquele fato de banho. Quando o experimentei, o calção sobrava nas minhas pernas
de guita e o lacinho branco perdia-se encarquilhado na tábua encovada do peito.
Factos a que pouco liguei, achei-me um máximo. Não reparei nesses pormenores
senão porque sim, não achei que me desfigurassem, nem assinalei as pilosidades
que despontavam a todo o vapor por tudo quanto era sítio. Pelo contrário,
ensaiei umas poses ao espelho e encontrei-me divinal. De modos que foi mesmo um
grande desgosto quando a minha amiga desceu do automóvel só com um embrulhinho
pequeno cheio de laçarotes, avançando, não posso tomar banho. E pôs aquele
olhar das garotas que, nas aulas de ginástica, se sentavam todas importantes num
banquinho e, irmã, hoje não posso fazer ginástica. Compreendi que me restava mirar-me
ao espelho mais duas ou três vezes, antes de entregar o produto. E disse adeus ao
banho no tanque, arrancado custosamente a meu pai, e em que eu entrava
sensacional.
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