sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Mistérios de "Fazer Anos"

Vi-a descer do automóvel – vimos todas, que a festa não começou sem a titi -,  pernas a perder de vista, enfiadas em salto agulha. Na rua do monte, os pés rodeavam a largura da regueira nascida por conta da matança dos porcos onde estagnava o sangue misturado na água, coalhadas a acastanhar aqui e ali, um cheiro acre que subia do veio escuro de terra empapada. E os pés temerosos, piso ou não. Lá em cima, o rosto franzido gritava repugnâncias enquanto o agrado das varejeiras esverdeava em volta do nylon esticado das meias, zunindo na aflição dos tornozelos. Beijou a sobrinha num encosto de face que me varou de subtileza, a estranheza das minhas tias alheias à cópia, no hábito  de abraços apertados e beijoquice à solta, então que é isso, estás zangada com a tia. Eu feita basbaque, defendida na âncora da porta, agarrada à aspereza dobrada da rede de pesca que a guardava de insectos. Eu tão perto do salto agulha que lhe sentia a irritação a encrespar à medida da lama nos gorgomilos, que nojice, olha para onde ela me trouxe, eu sou lá destes ambientes.  E depois nós quatro viradas a uma mesa com um bolo branquinho de neve, semeado de pérolas prateadas, a garridice de quatro velinhas floridas a altear expectativas. Reféns do bolo, olhos cativos no gosto só adivinhado, e ela impaciente, seca, esperem. E abriu a mala de mão num clique de finura. A máquina fotográfica - surgida da malinha em nada semelhante aos cestinhos plásticos das tias -, era um estranho objecto que nos tirava o retrato e para que sorríamos um tempão, até ao acender e apagar de uma luzinha. De máquina em punho, a soberba titi, nem um fio de cabelo a escapar-se da banana, contrapunha-se esfíngica ao aconchego buliçoso das minhas tias, os caça-rapazes a encaracolar na face risonha. Assustadas de novidade, logo julgámos que as exigências, ponham-se direitas, olhem para mim, riam, eram ordens cujo incumprimento daria prisão. Foi assim que legámos à posteridade três crianças-robot, hirtas e plastificadas, rodeando a naturalidade risonha da aniversariante.  Nesse dia, aprendi o ritual: acender as velas uma a uma, cantar ternamente a versão mais simples de “parabéns a você”,  bater as palmas no final e receber da aniversariante uma fatia de bolo. Depois, a minha amiga mordeu as velas que a mãe guardou. Perguntei se sabiam bem e ela, sabe a vela, não presta. Eu, por que é que as mordeste; ela, não sei, foi  a mamã que mandou. A mãe sorridente, a embrulhá-las num papelinho colorido, mordeste com força, deixaste as marcas dos dentes de leite, assim é que é - e num remate, a fixar-nos temerária -. Para dar sorte.
 Surpresa das surpresas, o bolo de laranja de minha mãe era melhor que aquele bolo nevado que no interior exibia, contornando a brancura, uma cinta escura de mau sabor. Aflita com a minha fatia, enfiei-a disfarçadamente no bolso do bibe, a amiudá-la em fanicos, polegar-indicador, polegar-indicador. Também as pérolas me desiludiram, não eram de prata, mas de açúcar e apesar de me divertir arrasá-las à dentada –  uma espécie de infracção gustativa –, depressa me fartei de doçura tão supérflua. Aquelas bolinhas diminutas não chegavam aos calcanhares dos torrões de açúcar amarelo que o meu avô, num sorriso de conluio,  furtava para os dois do açucareiro da avó, maravilha de loiça das Caldas com um ratinho matreiro na pega da tampa. Assistia-lhe aos dedos trôpegos a mexer a colher em busca de torrões jeitosos e na gradação certa de dureza - derreterem ao contacto da língua -, enquanto me sorria, dedo sobre o nariz, secretíssimo. Seguia-se o "Abre a boca e fecha os olhos". E eu obediente. Depois abria-os e meu avô  já mastigava divertido, é bom não é? Eu acenava de boca cheia, o açúcar um líquido escuro a invadir-me as entranhas. Prazer. Se minha avó calhava de nos apanhar, sorria para o lado e depois virava-nos cara séria e emitia um resmungo de conveniência, já viram isto, o velho é mais maluco que a gaiata. E nós concêntricos, num riso baixo. Talvez felizes. Mas se ela passava perto, apanhava-lhe o avental e a outra mão avançava a festejá-la tão de manso como nunca vi em alguém. A mão nodosa demorava-se entre a gola da blusa e o pescoço como se pertencesse ao lugar. Minha avó repuxava a roupa sem vontade de partir, ora esta, o velho tá maluco, vai mas é regar o jardim. E ia à sua vida. De certeza contente. Face a este angélico viver, as bolas prateadas de um bolo desenxabido nada podiam. 

Pela tardinha, o regresso feito dínamo, havia de azocrinar a paciência de minha mãe a contar e recontar novidades da festa de anos. Entretanto, ela virava-me o bolso do avesso a catar as migalhas para a palma da mão, olha para este trabalho, agora tenho de te lavar o bibe, tens aí uma nódoa de gordura. 
Não sei como, mas, então, a divisória era clara,  festas de anos não me pertenciam.

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